Não há como separar Roraima de seu rio principal, o rio Branco. Por ele chegaram os portugueses que tomaram posse da região, dando ao extremo norte do Brasil os contornos que têm hoje. Ele e seus tributários banham aproximadamente 90% da área do estado. O Branco faz parte da história e da identidade do lugar. "Ele é o sentido da existência de Roraima", afirma o advogado Jaime Brasil, que escreve há 5 anos sobre questões ambientais no Jornal Folha de Boa Vista. "É como se fosse nosso Ganges. Roraima só se tornou pedaço do Brasil, porque o rio Branco dava acesso a essa região". Entretanto, o rio Branco também sofre o peso dos planos e projetos de desenvolvimento feitos para o estado. Se cresce a capital Boa Vista, aumenta a quantidade de esgoto mal tratado despejado no rio. Se a produção de arroz se desenvolve, os agrotóxicos escorrem para ele. E, agora, há de satisfazer também o apetite do governo federal por energia elétrica.
Parte do Plano de Aceleração do Crescimento, o PAC 2, o projeto da Hidrelétrica Bem-Querer, em Caracaraí, ficará no local da também chamada Cachoeira do Bem Querer, um importante ponto turístico do estado. O investimento previsto para a usina é de R$ 3,9 bilhões. A sua barragem criará um lago ao longo de 135 quilômetros do rio Branco, que se estenderia até áreas acima de Boa Vista. Ele vai inundar praias, propriedades rurais, toda a mata ciliar que ainda existe ao longo desse trecho do rio e destruir parte da BR-174, rodovia que liga a capital de Roraima e Manaus. Os impactos serão sentidos em 6 dos 15 municípios do estado e 7 unidades de conservação federais vão ser afetadas. Há também preocupação com os impactos sociais e econômicos sobre 12 mil pequenos agricultores e 9 mil pescadores artesanais que atual na região.
O lago de 559 quilômetros quadrados que vai se formar é maior do que o reservatório previsto para Belo Monte, no Pará, que terá 519 quilômetros quadrados. Mas a usina paraense prevê uma capacidade instalada de cerca de 11.200 megawatts, contra 708 megawatts da usina do Bem Querer (ou 6,3% de Belo Monte). Esta péssima relação entre área alagada e energia gerada se deve a uma característica do Rio Branco: ele corre em uma área plana, sem uma grande queda d'água que possa ser aproveitada para a geração de energia. É mínima a diferença entre a altitude na confluência dos rios Tacutu e Uraricoera, onde o rio Branco se forma, e a sua foz no Rio Negro, na divisa entre Roraima e Amazonas. Fica em torno de 50 metros. E entre a cidade de Boa Vista e o local previsto para a barragem essa diferença é de apenas 17 metros.
Para os críticos, a interpretação desses números é simples: o impacto da hidrelétrica é alto para a produção de pouca energia. "Ela caminha para ser a pior hidrelétrica do PAC (Plano de Aceleração do Crescimento), nesta relação entre megawatts, área alagada e custo", afirma o biólogo Ciro Campos, do Instituto Socioambiental. E os impactos na identidade do povo roraimense também não estão sendo levados em conta. "A corredeira, por exemplo, e tudo que está associado a ela. Tem muito bicho associado, às praias vão desaparecer, não vai ter mais", diz o biólogo.
Grandes bagres prejudicados
Sylvio Romério Bríglia Ferreira, biólogo e analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, afirma que a barragem vai interferir no pulso de cheias e secas do Rio Branco, importante para a sobrevivência de centenas de espécies de peixes e outros organismos aquáticos.
A transformação do rio em lago também preocupa. "Com o alagamento, a correnteza natural vai dar lugar a água parada, com isso afundam as ovas de várias espécies de peixes, que normalmente são carregados pela correnteza". Nascido em Roraima, Briglia acredita que as mudanças no regime do rio Branco devem levar a uma explosão da população de piabas (peixes pequenos) e ciclídeos, como carás e tucunarés, mas com redução no número de grandes bagres e characiformes, como matrinxã, aracu e jaraqui.
Os grandes bagres da bacia amazônica migram pelo rio Branco para se reproduzir. A barragem pode interromper esse movimento. Ele destaca que em toda a Bacia do rio Branco e áreas vizinhas já foram descritas cerca de 550 espécies de peixes. A barragem deverá afetar o Parque Nacional do Viruá, considerada a região com uma das maiores diversidades de peixes do Brasil.
Os impactos deverão ser sentidos a centenas de quilômetros rio abaixo, até mesmo no Parque Nacional de Anavilhanas, no Rio Negro, já no Amazonas. Boa parte dos sedimentos que formam as ilhas fluviais de Anavilhanas desce justamente pelo rio Branco, alimentado por outros cursos d'água que descem do Planalto das Guianas, como os rios Uraricoera e o Mucajaí. Devido à mudança na dinâmica do rio, o Parque Nacional Viruá e a Estação Ecológica Niquiá serão afetados diretamente, pois fazem limite com o Branco, logo abaixo de Caracaraí.
Apesar das críticas, a construção da usina foi aprovada pelo Senado. A autorização para que a hidrelétrica seja implantada foi dada pelo Projeto de Decreto Legislativo número 201, de 2007, apresentado pelo ex-senador roraimense Augusto Botelho. Para os defensores do projeto, como a senadora Angela Portela (PT/RR), a hidrelétrica vai resolver o problema da falta de energia no estado e trazer novos investimentos.
Hoje, Roraima usa um sistema elétrico isolado do resto do Brasil. O estado consome em média 90 megawatts de energia, com picos de quase 140 megawatts. A maior parte dessa energia é importada da Hidrelétrica de Guri, na Venezuela. Há uma hidrelétrica, com capacidade de menos de 10 megawatts, no Rio Jatapu, sul de Roraima, que utiliza umas das suas 4 turbinas e gera somente 2,5 megawatts. Além disso, existem termelétricas em municípios e comunidades do interior.
Alternativas
Represar o Rio Branco não é a única opção para abastecer o estado de Roraima. Entre as alternativas está a energia de Tucuruí, que já chegou a Manaus. Até Boa Vista, seriam aproximadamente mais 800 quilômetros de Linhão. Para o governo do Estado, a hidrelétrica no rio Branco não é a melhor opção. Segundo a Secretaria Estadual de Comunicação, a preferência seria por uma barragem no Rio Cotingo, que aproveitasse a Cachoeira do Tamanduá, que fica na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, Nordeste do Estado. A área inundada seria uma fração, 36 quilômetros quadrados (6,3% do lado da previsto para o lago no rio Branco). Mas a oposição dos índios ligados ao Conselho Indígena de Roraima (CIR) é entrave a esse projeto. A decisão será tomada pelo governo federal. Resta ao governo estadual aguardá-la.
Roraima apóia também outra opção, a construção de duas hidrelétricas na República da Guiana, com a mesma capacidade dos projetos do lado brasileiro. Para o governo roraimense, interessado também no asfaltamento da estrada até Georgetown, capital do país, e na construção de um porto de águas profundas por lá. O Brasil poderia financiar as barragens no país vizinho em troca do fornecimento de energia.
Energia eólica
Para suprir Roraima, há ainda uma alternativa que não foi estudada: os ventos que sopram no extremo norte do estado, na fronteira com a Venezuela e a Guiana. A região é montanhosa e, de acordo com as informações da Empresa de Pesquisa Energética, do governo federal, a região é uma exceção à falta de ventos na Amazônia.
Essas montanhas são altas o suficiente, segundo a EPE, para serem varridas por uma estreita faixa de ventos com velocidade média anual entre 8 e 10 metros por segundo, localizada entre 1.000 e 2.000 metros de altitude, que sopram da foz do Rio Amazonas para o interior do continente. Este é um potencial ainda desprezado, mas que chamou a atenção do Conselho Indígena de Roraima (CIR).
O biólogo Ciro Campos, do Instituto Socioambiental, coordena um estudo sobre o potencial dos ventos que sopram na Terra Indígena Raposa Serra do Sol para a geração de energia. A intenção dos índios, caso seja confirmada a viabilidade do aproveitamento, é incluir usinas eólicas no Programa Luz para Todos, que por enquanto prevê apenas a construção de pequenas hidrelétricas para abastecer as comunidades indígenas.
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Energia:UHE Amazônia
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