A hora do mar: uma conversa crítica sobre os mosaicos de unidades de conservação marinhas
((o))eco - Por Rafael Loyola, entrevistas e análise
Já conversamos aqui no ((o))eco sobre uma questão fundamental quando se fala em conservação: a
efetividade das áreas protegidas. O assunto é polêmico e há a turma que pressupõe que quanto mais área sob proteção legal, melhor; e alguns, inclusive eu, que acham que é preciso
planejar os impactos positivos da criação das UCs, para que essas sejam estabelecidas em locais extremamente relevantes. A pergunta principal, portanto, é o que aconteceria em um determinado local caso ele não houvesse sido protegido? Se a resposta for "ele estaria degradado, as espécies seriam extintas, os ambientes poluídos, etc.", parabéns! Sua área protegida é top!
Nesse momento, estamos vivenciando essa discussão na prática! Após um longo processo e com o intuito de ampliar a rede de unidades de conservação marinha no Brasil, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) finalmente abriu consultas públicas para
criação de dois grandes mosaicos de unidades de conservação no espaço marinho.
Essas áreas protegeriam uma área total de 887.040 km² do arquipélago de São Pedro e São Paulo (ASPSP) e da cadeia de Montes Submarinos Vitória-Trindade e Arquipélagos de Trindade/Martim Vaz, cobrindo cerca de 24,5% de toda Zona Econômica Exclusiva (ZEE) brasileira. Nessa proposta, em ambas regiões seriam criadas UCs em duas categorias de manejo: um Monumento Natural (MONA), de proteção integral; e uma Área de Proteção Ambiental (APA), que permite uso sustentável dos recursos.
Para entender melhor quais são as ameaças incidentes sobre essas áreas, o que está em jogo com a criação das UCs e o que podemos esperar dos decretos de criação, conversei com Ronaldo Francini Filho - especialista em ecologia e conservação marinha e docente da UFPB, e Daniele Vila Nova - doutora em Ecologia e Conservação e integrante da Ouvidoria do Mar.
A conversa cobriu uma análise crítica das propostas, mas afastada do sensacionalismo que têm aparecido na mídia. Ficou claro que os dois, e eu também, são favoráveis à criação das áreas e acham superimportante proteger esses espaços. Mas como vocês verão, eles têm ressalvas claras sobre o que precisa acontecer nas áreas e o que deveria constar nos decretos de criação das UCs. Vamos lá...
RAFAEL: Pessoal, obrigado por toparem esse bate-papo. Espero que essa seja mais uma camada de informação para as decisões importantes que serão tomadas a partir das consultas públicas do ICMBio. Então, para começar, quais as principais ameaças nessas áreas onde possivelmente serão criadas as UCs?
RONALDO: O principal impacto nestas regiões hoje é a sobrepesca. No arquipélago de São Pedro e São Paulo (ASPSP), a pesca é direcionada a grandes peixes pelágicos, principalmente atuns e cavalas, que são capturados com espinhéis de superfície e linhas de mão. Esses espinhéis capturam tubarões incidentalmente e até o final da década de noventa, a prática de finning - como é conhecida a retirada de nadadeiras para exportação - era frequente.
A pesca de peixes que vivem associados ao fundo rochoso do ASPSP (chamados peixes recifais), principalmente xaréus, também é praticada com linhas de mão e anzóis a partir de barcos e das ilhas. É notável a quantidade de linhas enroscadas em colônias de corais no ASPSP, o que poderia até facilitar a proliferação de doenças.
Por outro lado, a pesca na Cadeia de Montes Submarinos Vitória-Trindade e Arquipélagos de Trindade/Martim Vaz é praticada por barcos com 12-25m de comprimento e as principais artes são linha e anzol, espinhel de superfície, espinhel de fundo e arrasto de linha. Nesse caso, as espécies mais capturadas são predadores de médio porte, como garoupas, badejos e xaréus, e espécies maiores como o tubarão-azul, meca e dourados, incluindo espécies ameaçadas de extinção como o tubarão-lixa.
RAFAEL: E há mineração também...
RONALDO: Isso! Outra ameaça importante para ambos os mosaicos de UCs propostos é a mineração. Na região da
Dorsal Meso-Atlântica (DMA), na qual o arquipélago de São Pedro e São Paulo (ASPSP) está inserido, existem lavras de mineração de cobre, cobalto e zinco exploradas por França, Alemanha e Inglaterra. Estes minérios apresentam alto valor comercial e são utilizados em componentes de celulares, computadores, turbinas de avião e muitos outros produtos. Então, há uma tendência de aumento nas atividades de mineração marinha na região da Dorsal Meso-Atlântica (DMA), com ambições do Brasil para o início desta prática. Já na Cadeia Vitória-Trindade, o alvo principal da mineração são nódulos calcários (aquelas algas formadoras de bancos de rodolitos), os quais são ricos em micronutrientes e são utilizados para correção de acidez do solo em monoculturas e como adubo.
DANIELE: Exato. Além disso, esses minérios e compostos polimetálicos são detalhados para ASPSP [arquipélago de São Pedro e São Paulo] e Trindade inclusive no Plano Setorial para os Recursos do Mar. O plano define diretrizes para a exploração dos recursos marítimos brasileiros para o período de 2016 a 2019. Então, a criação das UCs propostas deveria ser fortemente respaldada pela
legislação do SNUC [Sistema Nacional de Unidades Conservação] quanto aos seus usos, excluindo essas atividades no interior dessas UCs.
RAFAEL: Essa é uma colocação importante da Daniele. No formato atual da proposta, na qual seriam criadas APAs e MONAs, quais são as principais limitações dessas categorias de manejo diante das ameaças que vocês falaram?
RONALDO: As grandes APAs propostas não protegerão a biodiversidade de fato caso não contenham por explícito em seus decretos de criação a proibição de atividades de mineração.
RAFAEL: Mas isso pode acontecer?
RONALDO: Pode! A categoria de MONA [Monumento Natural], por exemplo, foi criada originalmente para o ambiente terrestre e existem interpretações conflitantes sobre a possibilidade ou não de uso direto, como a pesca. Por exemplo, no MONA Cagarras, no Rio de Janeiro, a pesca é permitida. Ou seja, na minha opinião, a criação dos MONAs nas ilhas oceânicas só faria sentido com o compromisso explícito de proteção integral.
DANIELE: Vale lembrar que UCs de proteção integral (como o MONA) podem ter acesso a recursos de compensação ambiental, o que geraria subsídios para a manutenção das UCs nessas ilhas remotas. Por serem áreas enormes, as maiores a serem criadas para o ambiente marinho no Brasil, é necessário que os mecanismos de gestão, incluindo recursos humanos, financeiros e material, estejam claramente definidos no decreto de criação.
RAFAEL: Isso seria ótimo! E como ficaria a fiscalização?
DANIELE: Temos um conjunto de UCs costeiras e marinhas de baixíssima efetividade no país, sem gestor, sem plano de manejo, sem recursos para fiscalização. Nesse caso, como será feita a fiscalização/monitoramento da pesca numa área tão remota? Na ilha da Trindade, seria interessante a construção de uma base do ICMBio assim como existe na REBIO do Atol das Rocas, por exemplo. Atualmente, os pesquisadores permanecem na base da marinha em Trindade.
RONALDO: Claro! Além disso, todas as UCs têm obrigação de finalização de seu Plano de Manejo em prazo de cinco anos, o que raramente é cumprido no Brasil. No caso dessas áreas, a publicação dos Planos de Manejo das grandes APAs no menor prazo possível é essencial para um monitoramento e ordenamento da pesca efetivos.
RAFAEL: Gente, com a criação dessas UCs o país teria quase 25% do espaço marinho sob alguma forma de proteção. Nesse caso, o Brasil atingiria a meta 11 do plano estratégico para a conservação da biodiversidade até 2020? (Conhecida como meta 11 de Aichi que fixa a proteção de pelo menos 10% de ecossistemas costeiros e marinhos)
RONALDO: Não. Com a criação das UCs propostas, o Brasil atingiria pouco mais de 20% de sua
ZEE em UCs, incluindo proteção integral e uso sustentável. No entanto, essa meta no plano da Convenção Sobre Diversidade Biológica (CDB) é clara: a rede de áreas protegidas deve ser representativa, ou seja, precisa incluir diferentes habitats e ecossistemas e com foco especial para alguns ecossistemas como recifes de corais. Com a criação das duas grandes APAs, teríamos em grande parte apenas mar aberto protegido.
DANIELE: Concordo. Essa propaganda de que o Brasil atingirá os compromissos assumidos internacionalmente é falsa. A meta não é proteger simplesmente em termos de área e sim em termos de representatividade. O Brasil é rico em ecossistemas costeiros e marinhos, e todos eles devem estar devidamente protegidos.
RAFAEL: Certo. Isso nos leva à conversa sobre a efetividade das áreas. Unidades de conservação deveriam ser criadas para cessar ameaças sobre a biodiversidade, proteger uma parte da biodiversidade que sem proteção desapareceria e garantir o acesso aos bens e serviços que a natureza entrega às pessoas. Nesse caso, há uma falta de representatividade nas UCs propostas, como vocês disseram. É isso?
RONALDO: Sim... por exemplo, mesmo com toda essa área de UCs ainda estaríamos longe de proteger os 10% dos recifes de corais e manguezais. A estratégia de criação de grandes áreas protegidas com baixa restrição, ou seja, que ainda permitam atividades como a pesca, apenas para o atingimento espúrio das metas de Aichi, já foi adotada por outros países, como no caso da criação de grandes áreas protegidas em mar aberto no noroeste do Havaí, pelos Estados Unidos.
RAFAEL: O que muita gente aplaudiu como um feito fantástico, mas vários pesquisadores criticaram. Na Austrália, que tem uma extensa rede de áreas protegidas, também há muitas críticas porque basicamente o governo criou áreas onde não há nenhum conflito com a mineração e a pesca, mas as espécies continuam ameaçadas e desaparecendo...
DANIELE: Sim, porque é relativamente 'fácil' criar grandes UCs em áreas distantes, com poucos conflitos (apesar de termos bastante conflitos com a pesca e mineração, como já mencionado), mas que de fato irá proteger pouca biodiversidade se comparado a outras áreas mais costeiras e com mais conflitos como turismo desordenado, especulação imobiliária, poluição costeira, etc.
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Ficou claro para mim, no papo com a Daniele e o Ronaldo, que o Brasil está no caminho certo ao planejar a expansão das UCs marinhas e focar, no momento, no arquipélago de São Pedro e São Paulo e Cadeia de Montes Submarinos Vitória-Trindade e Arquipélagos de Trindade/Martim Vaz. Mas três coisas são fundamentais nesse processo.
Primeiro, é muito importante incluir nos decretos de criação de forma explícita, a proibição da pesca e mineração nos MONAs (e brigar para que essas áreas de proteção integral sejam realmente criadas). Depois, é preciso batalhar para que os planos de manejo das APAs sejam elaborados e publicados o mais rápido possível, para definir claramente os usos. Por fim, esse é um ano de eleições e oportunidades políticas como essa costumam aparecer e serem bem utilizadas.
Toda decisão sobre conservar uma área é política, até aí tudo bem. Mas, como sociedade, precisamos estar atentos para que a criação de áreas com um forte componente político associado a compromissos internacionais não virem uma grande desculpa para que, por longos anos, não se fale nem se planejem mais a criação de UCs marinhas. Torçamos e nos engajemos para que esse não seja o caso e que a hora do mar tenha apenas começado.
http://www.oeco.org.br/colunas/colunistas-convidados/a-hora-do-mar-uma-conversa-critica-sobre-os-mosaicos-de-unidades-de-conservacao-marinhas/
Biodiversidade:Políticas
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