Vale e ICMBio tentam conciliar lavra e conservação em Carajás

Valor Econômico, Empresas, p. B2 - 25/02/2015
Vale e ICMBio tentam conciliar lavra e conservação em Carajás
Vale entrou com termo de referência no Ibama para mina N3 e espera licença de operação da N5S em alguns meses

Francisco Góes

Na Floresta Nacional do Tapirapé-Aquiri, onde a Vale explora cobre, os índios xikrin-cateté mantêm a tradição de permanecer meses dentro da mata a cada ano para colher castanhas. A Tapirapé-Aquiri é uma das unidades de conservação da região de Carajás, sudeste do Pará, onde existe um "mosaico" de Floresta Amazônica. É nesse ambiente de mata nativa que a mineração de ferro se desenvolveu nos últimos 30 anos, desde que a Vale começou os embarques do produto nas jazidas da região, situadas dentro de outra área de conservação criada pelo governo federal em 1998, a Floresta Nacional de Carajás (Flona).
A Flona e a Tapirapé-Aquiri são vizinhas. Esse conjunto de unidades de conservação é formado ainda pela Floresta Nacional do Itacaiúnas, pela Área de Proteção Ambiental do Igarapé do Gelado e pela reserva biológica do Tapirapé. Juntas, essas cinco unidades perfazem um total de 8.679,5 km2 de mata nativa, o equivalente a cinco vezes e meia o município de São Paulo. A Vale ajuda a proteger essas áreas em parceria com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), a quem cabe a gestão das unidades de conservação federais.
A mineração contribuiu de forma decisiva para manter a floresta de pé desde o começo do Projeto Ferro Carajás, em 1981. Fora das áreas protegidas, a ocupação humana e atividades econômicas como a pecuária provocaram desmatamento da Floresta Amazônica na região. Como compensação pelo desenvolvimento de seus projetos, caso do S11D, na serra sul de Carajás, a Vale tem compromissos de reflorestamento com mata nativa em outros locais, fora das unidades de conservação. "No S11D haverá seis mil hectares recuperados na Serra da Bocaina", disse Leonardo Neves, gerente do departamento de meio ambiente e sustentabilidade da Vale na região norte. Neves disse que no entorno da Flona a Vale comprou 18 mil hectares que vão servir como "colchão" para a Flona. "Plantamos 100 mil mudas na região e a meta é plantar 300 mil até o fim do projeto do S11D."
Mesmo assim, os interesses da mineração e da conservação nem sempre são idênticos. A mineração nesse ambiente amazônico também impõe conflitos. Um deles está no fato de a mineração criar pressões no entorno das áreas protegidas. Grandes projetos minerais resultam em fluxos migratórios que ocupam áreas. A criação de unidades de conservação permitiu à Vale, nesse contexto, evitar que novas comunidades surgissem próximas de áreas ricas em minérios. "Hoje, a ocupação humana é mais difícil de ser derrotada politicamente do que a questão ambiental. Se tiver uma comunidade, uma vila, uma cidade, é mais difícil fazer mineração do que se tiver uma espécie ameaçada, uma lagoa ou uma caverna porque vai lidar com pessoas", diz Frederico Martins, chefe da Flona Carajás. Para ele, o principal conflito hoje refere-se à mineração nas áreas de canga dentro da Floresta Nacional de Carajás. A canga é uma savana adaptada ao solo rico em ferro e possui flora e fauna típicos. "Existem 41 espécies de flora apeados na canga de Carajás e esse número pode passar de 50", diz Martins. Há espécies que só surgem na serra norte de Carajás, como a Flor de Carajás (Ipomoea cavalcantei) e outras só na serra sul (Ipomoea marabaense). O decreto de criação da Flona Carajás diz que, consideradas as peculiaridades geológicas da área, incluem-se, entre seus objetivos de manejo a pesquisa, a lavra, o beneficiamento, o transporte e a venda de recursos minerais.
Nos últimos tempos, ganhou força a discussão sobre o avanço da lavra sobre as áreas de canga. Em 2014, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) concedeu à Vale licença ambiental para ampliar a exploração nas minas N4 e N5, na serra norte. A licença permitiu à empresa começar a minerar o corpo N4WS, importante em 2015 e 2016. Mas a licença também estabeleceu condicionantes que deixaram indisponíveis, para a realização de atividades minerais, outros corpos nas serras norte e sul (S11B, S11C e Tarzan e N2, N3, N6, N7, N8 e N9), até que seja definida uma área testemunho de savana, ecologicamente viável. As áreas testemunho são áreas que o ICMBio quer preservar como amostras viáveis de espécies que compõem a diversidade da canga.
Apesar dessas condições, a Vale elaborou uma proposta de termo de referência para execução de estudos ambientais na mina de N3, ainda não explorada. O termo de referência é uma primeira etapa do processo de licenciamento. A Vale afirmou que o licenciamento desta área segue os planos de produção previstos para o longo prazo, não estando previsto no planejamento da empresa a curto prazo.
Para avançar a lavra nas áreas de canga em Carajás, será preciso concluir estudos científicos com áreas testemunho. "O ICMBio não quer que haja perda de biodiversidade. Nosso trabalho é compatibilizar a mineração com a conservação e ter populações viáveis a longo prazo", disse Marcelo Marcelino, diretor de pesquisa, avaliação e monitoramento da Biodiversidade do ICMBio. Essa amostra poderá ser uma fração do todo, mas terá que ser garantida. Marcelino disse que entre 2 e 4 de março haverá uma "oficina" para discutir a questão das áreas testemunho.
A Vale afirmou que existe um grupo de trabalho formado por técnicos da empresa e do ICMBio para discussão do tema. "O objetivo do grupo é verificar a melhor forma de como se dará a exploração destas áreas, aliando a prática do desenvolvimento sustentável ao desenvolvimento econômico, que se faz necessário para atender a balança comercial do país", disse a empresa. A Vale informa que utiliza 3% da Flona Carajás, que tem 392.725 mil hectares. Desse total, 11.380 hectares correspondem à canga, segundo o ICMBio. As expansões nas minas N4 e N5 mais a exploração do S11D vão aumentar de 21% para 34,6% a supressão da área de canga na Flona, o que ainda não coloca em risco a perda de biodiversidade, diz o ICMBio.
A Vale afirmou que tem participado, juntamente com o ICMBio, de discussões técnicas sobre o tema. "Existe inclusive um termo de reciprocidade assinado entre as partes para evoluir conjuntamente no conhecimento sobre áreas de canga, bem como na escolha e definição de áreas que deverão ser protegidas e guardadas como acervo representativo naquele território. Assim, e dado que o tema encontra-se em discussão, e que todas as atividades da Vale, até a presente data, na Flona Carajás, já foram licenciadas e autorizadas por Ibama e ICMBio, respectivamente, constitui fato que a Vale vem seguindo rigorosamente seus compromissos legais e socioambientais, e encontra-se aguardando a definição sobre canga, de forma a destinar área que funcionará como representativa desse ambiente, ocorrente em áreas ferríferas", disse a empresa.
Outra discussão entre a conservação e a mineração refere-se às atividades minerais próximas de cavernas. Existe legislação sobre o tema. No caso de cavernas consideradas de máxima relevância, por exemplo, é preciso manter área de preservação de 250 metros em torno da cavidade. A mina N5S, em Carajás, que a Vale tenta avançar na lavra, é rica em cavernas. O Valor apurou que, neste caso, o Ibama teria definido um protocolo para permitir avançar a lavra em etapas na N5S. O Ibama confirmou que a Vale apresentou estudos complementares com o objetivo de avançar na lavra da mina N5S, que também precisará de autorização de supressão de vegetação. Mas esses estudos ainda estão em análise, disse o Ibama. A Vale disse que aguarda a licença de operação da N5S nos próximos meses.
No mercado, comenta-se que a Vale tem interesse em mudar a legislação sobre cavernas. A empresa afirmou: "A Vale, junto com outras empresas, através do Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM), tem participado ativamente das discussões sobre este tema, com apresentação de propostas para contribuir para a evolução técnica e jurídica das normas e procedimentos relacionados ao patrimônio espeleológico, garantindo o desenvolvimento sustentável de suas atividades. A legislação, hoje vigente, carece de revisão respaldada pela evolução dos estudos, conhecimentos e trabalhos já realizados. Além disso, vale destacar que a Vale é a empresa que mais vem estudando o tema cavidades no Brasil, contribuindo sobremaneira para o acervo técnico do ICMBio e capacitação profissional de profissionais desse Instituto e do Ibama.
O Ministério do Meio Ambiente informou que um comitê técnico consultivo concluiu os trabalhos para a revisão da instrução normativa número 2, de 2009, que trata de procedimentos para a definição de relevância das cavidades. "No Artigo 4, parágrafo 2o, da resolução Conama 347/97, está estabelecido que a área de influência sobre o patrimônio espeleológico será definida pelo órgão ambiental competente, que poderá, para este fim, exigir estudos específicos, a serem custeados pelo empreendedor. Já o parágrafo 3o, da mesma resolução, estabelece que, até que se efetive o previsto no parágrafo anterior, as áreas de influência das cavidades será a projeção horizontal da caverna acrescida de um entorno de 250 metros, em forma de poligonal convexa. Ou seja, este raio prevalece até que órgão ambiental competente defina a área de influência das cavernas, em qualquer categoria de relevância", afirmou em nota o MMA.

Valor Econômico, 25/02/2015, Empresas, p. B2

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