Monte Pascoal: caciques Pataxó pedem socorro para a floresta no sul da Bahia
por Spensy Pimentel em 31 Março 2020
Reserva valiosa da Mata Atlântica e cenário histórico do descobrimento do Brasil, a terra dos Pataxó sofre com a derrubada ilegal de madeiras nobres, usadas para a produção de artesanato. Entre os envolvidos no crime, há também indígenas.
As peças, como as famosas gamelas, são vendidas aos turistas em todo o sul da Bahia e levadas em caminhões para grandes cidades do país. No Parque Nacional do Monte Pascoal, das quatro trilhas usadas por visitantes, duas já foram fechadas pelo medo da presença de invasores.
Fazendas de gado, de eucalipto e culturas como café, mamão e pimenta-do-reino são alvos de outras denúncias dos Pataxó. Suas terras sofrem com pulverizações irregulares de agrotóxicos e represamento dos cursos d'água.
Por outro lado, cresce nos últimos anos o envolvimento dos indígenas com a conservação e a restauração da floresta. Os Pataxó também começam a tentar atividades econômicas mais sustentáveis, como a produção de mudas nativas e a criação de pequenos animais.
O verão que acabou há pouco no sul da Bahia foi atípico para Kaxiló Pataxó, professor indígena que também atua como guia turístico no Parque Nacional e Histórico do Monte Pascoal. Hoje com 28 anos, ele conta que desde criança já conduzia pessoas para conhecer as trilhas que, em meio à Mata Atlântica, levam ao topo do famoso marco histórico da chegada dos portugueses à costa do Brasil, em 1500.
Nos últimos meses, Kaxiló parou de acompanhar os visitantes. "Não havia condições. Por onde você rodava era barulho de motosserra", conta ele. "Os turistas ficavam perguntando: 'E o que vocês vão fazer?'. A gente respondia: 'Olha, o que podemos fazer é pedir fiscalização'".
Pela primeira vez desde que era menino, Kaxiló passou o mês de janeiro trabalhando como diarista na colheita de pimenta-do-reino. "Esse verão foi o mais triste", resume. "Fui obrigado a me subordinar a um fazendeiro, coisa que eu não quero para ninguém."
Imagens de satélite revelam como os três parques nacionais na região entre Porto Seguro e Prado, bem como as terras indígenas Barra Velha e Cahy-Pequi, formam um pequeno arquipélago verde em meio às áreas desmatadas gradualmente depois da abertura da BR-101, nos anos 70.
Nos arredores das reservas, fazendas de gado, eucalipto e culturas como café, mamão e pimenta-do-reino são alvos de denúncias dos indígenas, que reclamam das pulverizações irregulares de agrotóxicos, do desmatamento ilegal e do represamento abusivo dos cursos d'água.
O problema apontado por Kaxiló, no entanto, não é no entorno do parque nacional, e sim dentro da própria floresta que cobre o Monte Pascoal. Das quatro trilhas pelas quais os guias costumavam conduzir os visitantes, duas estão fechadas atualmente, em função da retirada ilegal de madeira. Segundo Kaxiló, dos 16 Pataxó que trabalhavam como guias, só cinco continuam exercendo a função - a maioria agora sobrevive de bicos nas fazendas da região.
"Que turista vai querer entrar num lugar onde está tendo retirada de madeira? Turista quer sossego, vem para escutar o canto de um pássaro. Ele chega aqui, desce do carro e já ouve o barulho das motosserras", explica Kaxiló. "É perigoso até o sujeito que está cortando madeira achar que eu estou levando gente lá para denunciá-lo."
Nos últimos meses, em pelo menos duas ocasiões, pessoas ligadas a atividades de conservação do parque nacional foram ameaçadas por tiros disparados pelos envolvidos na extração ilegal de madeira, ao aproximar-se das áreas onde estava ocorrendo o corte. Até mesmo lideranças indígenas e funcionários da reserva têm sido alvo das ameaças.
Desmatamento na região chega a ponto crítico
A retirada ilegal de madeira das matas que ainda predominam nos limites do Parque Nacional e Histórico do Monte Pascoal é um problema antigo. E que, na avaliação dos Pataxó da Terra Indígena Barra Velha, chegou a um ponto que requer ações emergenciais das autoridades.
Em 7 de fevereiro, os caciques das 17 aldeias da TI reuniram-se para começar a preparar um documento sobre o tema. Simbolicamente, eles fecharam o portão principal do parque e anunciaram que o Conselho de Caciques está oficialmente vetando a visitação.
Guaru Pataxó, líder de uma das aldeias que ficam próximas ao monte, explica que há um consenso entre as lideranças em torno da urgência de cobrar ações dos órgãos federais. "Chegou o dia de a gente não aguentar mais. Todo o mundo se mobilizou", conta ele. "Está uma coisa desenfreada. De segunda a domingo, de noite e de dia."
O alvo da extração ilegal são as árvores de madeiras nobres, utilizadas para fazer peças vendidas aos turistas em todo o sul da Bahia e transportadas em caminhões para grandes cidades do país. Entre os envolvidos no crime também há indígenas, diz o cacique.
"Tem um tipo de artesanato que o índio faz que não degrada a natureza, com sementes, cipós. Mas esse tipo que estão fazendo já é outro, incentivado pelo não índio", conta Guaru. "Esse artesanato aí sai de caminhão para Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília. Os caras vêm, enchem o caminhão de artesanato e incentivam os índios a produzirem mais peças, e aí o índio vai lá derrubar as árvores."
O item mais conhecido do artesanato local é a gamela de madeira. Tradicionalmente, explica o cacique, ela era utilizada nas residências para dar banho em bebês, salgar peixe ou lavar pratos. Mas, da forma como é produzida hoje, não pode mais ser considerada como parte da cultura indígena.
"O nosso artesanato tradicional não degrada a mãe natureza", diz Guaru. "A gamela era para uso do indígena, não para vender. Esse artesanato que estão vendendo na beira da pista já é incentivo do não índio, de gente que vem de fora. Eles mandam fazer e compram barato, por migalha."
Além da gamela, a madeira retirada do parque é usada para confeccionar tábuas de carnes, colheres de pau e outros utensílios. "A comunidade acordou para a vida, e está pedindo apoio das autoridades. As pessoas estão percebendo que não estão se beneficiando em nada com esse artesanato. Elas mal têm para comer", continua o cacique. "Daqui a pouco nossos filhos vão nos cobrar, porque já não haverá árvore nenhuma para mostrar para eles."
Guaru explica que pelo parque já não se encontram exemplares de árvores como paraju, maracanaíba, maçaranduba, aderno, arruda e braúna. "Do avião você já consegue ver alguns buracos na mata", diz ele. A direção do parque não dispõe de números exatos sobre o desmatamento na área nos últimos anos. Como a extração ligada ao artesanato é seletiva, não gera grandes clareiras que possam ser enxergadas via satélite.
Ainda assim, em 2016, a Fundação SOS Mata Atlântica contabilizou um desmate de 632 hectares na área do parque. Seja como for, a avaliação da situação, tanto por parte dos caciques como por parte do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) é dramática. "Se continuar nesse ritmo, até 2030 não vai sobrar mais nada", conta o cacique. "Creio que até antes disso", complementa Cássia Saretta, funcionária do ICMBio que é a gestora do Parque Nacional do Monte Pascoal.
Saretta reforça a fala do cacique Pataxó: "Essa produção em massa de gamelas não é cultural. Ela surgiu com a chegada dos turistas à região". Atualmente, segundo ela, o órgão estuda a retomada de uma antiga campanha publicitária local, voltada aos visitantes. "Existe toda uma cadeia alimentando esse comércio, então precisamos dizer claramente ao turista: 'Você é parte de uma cadeia criminosa quando compra esse objeto'."
O problema, dentro e fora do parque nacional
Uma breve caminhada nas proximidades da portaria do parque, no início das trilhas usadas pelos guias Pataxó, já é suficiente para escancarar o problema. Em diversos pontos, encontramos grandes condurus caídos, com parte dos troncos de 70 a 80 centímetros de diâmetro convertidos em tábuas retangulares ou redondas que depois serão transformadas em gamelas ou tábuas de carnes e petiscos.
O trabalho de corte e parte do acabamento são feitos ali mesmo, no meio da mata. As peças prontas, ou quase, são carregadas em lombos de burro e podem ser levadas até oficinas em povoados da região onde novas etapas da produção geram colheres e outros utensílios em madeira de lei.
A última operação de fiscalização que envolveu ação policial ocorreu em 2017 e fechou diversas oficinas em Montinho, povoado do município de Itabela (na altura do km 784 da BR-101), a cerca de 25 quilômetros da portaria do parque.
José (nome fictício), indígena que trabalhou na retirada de madeira por 20 anos e há 10 abandonou a atividade, conta que o serviço é duro e pouco compensador. "É um trabalho muito cativo, você não se alimenta bem, fica o dia todo lá no meio da floresta na base de farofa. Eu ia para o mato todo dia pedindo para Deus me tirar dali. E saí por conta própria."
Ele relata que muitos indígenas são atraídos pelo valor pago pelos atravessadores, mas eles têm dificuldade de constatar que, na realidade, os custos de produção são altos e não compensam. "Eu entregava as peças para o atravessador e recebia 5 mil reais. Mas, quando comecei a colocar na ponta da caneta, vi que, considerando o gasto que tinha com ferramentas, animais, combustível, estava perdendo 25 reais por dia. Não conseguia nem reservar 40 reais diários, que era minha meta. Eu ficava sempre devendo. E isso acontece com todo mundo."
Hoje, José conta que luta pela preservação do parque. Religioso, diz que os "tiradores de madeira" em geral não conseguem acumular dinheiro ou bens com sua atividade. "Nós somos como aquele sujeito que sangra o boi. Esse sujeito não fica com nada, quem lucra é quem vende os pedaços do boi já morto."
Para reforçar a imagem do sacrifício que representa o corte de uma árvore, José lembra que algumas, como o paraju, chegam a jorrar muita água armazenada em seus troncos quando são feridas pela motosserra. "A árvore é uma vida, nós estamos tirando vidas, e a natureza cobra. Hoje eu falo para os meus filhos: pode ficar dormindo em casa o dia todo, mas não vá para a mata de jeito nenhum."
Em busca de novos meios de vida
Várias das aldeias na região do Monte Pascoal que vivem esse problema da extração ilegal de madeira têm buscado alternativas econômicas para seus habitantes. Hoje, há em curso nas comunidades projetos de agroflorestas, viveiros de produção de mudas nativas e criação de pequenos animais. O volume dos investimentos, contudo, ainda é considerado insuficiente.
"A nossa ideia é buscar projetos para desenvolver dentro das comunidades", conta o cacique Guaru Pataxó. Um programa estadual, o Bahia Produtiva, tem apoiado algumas iniciativas nos últimos anos.
A dificuldade para obter recursos que auxiliem na conservação da Mata Atlântica na região é um consenso entre os entrevistados. Os fundos governamentais já eram exíguos e têm diminuído ainda mais desde a posse do novo governo, em 2019.
"O Estado está debilitado, não podendo agir de forma eficaz", resume o biólogo José Francisco Azevedo Jr., fundador da Natureza Bela, ONG ambientalista local que é parceira das comunidades indígenas em projetos de restauração florestal no Monte Pascoal e em outro parque nacional próximo, o do Pau Brasil, com apoio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), uma das poucas iniciativas em curso no momento. "Praticamente não existem mais linhas de crédito para restauração florestal hoje."
Outra dificuldade é que o financiamento internacional tem rareado. O engenheiro florestal Daniel Piotto, professor na Universidade Federal do Sul da Bahia, em Itabuna, conta que, desde os anos 90, a cooperação alemã e outros doadores internacionais marcavam presença na região, mas, recentemente, em função do foco na Amazônia e dos novos posicionamentos políticos do governo brasileiro, houve um recuo.
Piotto, que fez doutorado na Universidade Yale, um dos principais centros mundiais na área de estudos florestais, seria um dos coordenadores do Centro de Referência em Restauração Florestal do Sul da Bahia, projeto que seria apoiado pelos alemães e pelo Ministério do Meio Ambiente. "O apoio internacional sempre foi mais modesto para a Mata Atlântica, mas agora simplesmente desapareceu."
Segundo dados da SOS Mata Atlântica, ainda restam 11,1% do bioma no estado da Bahia, ou 2,3 milhões de hectares. Entre 2015 e 2016, o estado esteve no topo do ranking dos desmatadores dessa floresta úmida, com 12.288 hectares. Entre 2016 e 2017, foram 4.050 hectares. Entre 2017 e 2018 foram mais 1.985 hectares perdidos, o que manteve a Bahia entre os cinco estados que mais devastam essa vegetação.
Daniel Piotto destaca que, apesar da parcela pequena que ainda resta da Mata Atlântica original na Bahia, as pesquisas têm revelado que se trata de um bioma com altíssimo índice de biodiversidade. "No caso do Monte Pascoal, trata-se de uma floresta submontana que é a mais biodiversa que existe na Bahia. Há várias espécies endêmicas", conta o engenheiro florestal.
Piotto acrescenta que, nos próximos anos, a região enfrentará um desafio ainda maior por conta das mudanças climáticas, que devem aumentar o rigor dos períodos de seca. "O corte seletivo praticado nos últimos tempos acaba abandonando na mata os restos das árvores, que se tornam um material combustível com alta probabilidade de queimar nesses eventos extremos."
No início de 2019, um incêndio devastou 6% dos 22.500 hectares do Parque Nacional e Histórico do Monte Pascoal. O combate ao fogo contou com o apoio fundamental da equipe de brigadistas indígenas. "Nossos brigadistas têm sido guerreiros. Mas há áreas do parque que já estão cobertas de samambaia, com o solo ácido. Sem uma atenção maior, não haverá resiliência que suporte", alerta a gestora do parque, Cássia Saretta.
Consciência para a conservação
O envolvimento dos indígenas com a conservação e a restauração tem crescido nos últimos anos. Há até uma cooperativa indígena criada para executar serviços em projetos de restauração florestal, a Cooplanjé. Em fevereiro, ativistas Pataxó realizaram o plantio de mudas em áreas onde detectaram a derrubada de árvores.
A ideia é difundir um clima de comprometimento com uma mudança de atitude, conta o cacique Guaru: "Muitos daqueles que antes defendiam a extração de madeira agora estão virando o disco. Não adianta tapar o sol com a peneira. Quem estiver cometendo seus erros que pague".
Segundo dados do Instituto Socioambiental, as 17 aldeias da área de Barra Velha registram cerca de 5 mil moradores. Originalmente, a terra indígena foi demarcada com 8.627 hectares, mas, para atender os critérios criados pela Constituição de 1988, houve um reestudo, ainda não homologado, que identificou 44.121 hectares, dos quais 13.275 se sobrepõem à área do Parque Nacional e Histórico do Monte Pascoal.
A área corresponde a uma parte do território ancestral dos Aimoré, entre Bahia, Minas Gerais e Espírito Santo - nome dado no período colonial aos vários grupos de língua Jê da região, que mantiveram guerra contra os portugueses por quase 120 anos, entre 1555 e 1673.
Em 1951, os Pataxó também foram alvo de uma ação policial que promoveu uma diáspora dos moradores de Barra Velha por todo o sul da Bahia. O episódio, conhecido como Fogo de 51, está associado, na memória indígena, aos esforços do governo brasileiro para retirar à força os nativos da área onde estava sendo implantado o parque do Monte Pascoal.
"No sul da Bahia, o Estado já foi considerado um ente agressor, não se conseguia convergir entre a conservação ambiental e a garantia de direitos sociais", avalia Cássia Saretta, do ICMBio.
"Esse parque foi criado em 1961 em cima de terra indígena. E era tudo mata nessa época", conta o cacique Guaru. "Em 1999, quando ocupamos as terras no entorno do monte, foi para cuidar da natureza."
"É um problema ambiental e social o que temos aqui. Precisamos buscar alternativas para as comunidades saírem dessa mesmice da madeira", continua Saretta. "Ninguém vai morrer de fome se parar de cortar a madeira, é só ter coragem de trabalhar", atesta o ex-matador de árvores José, hoje dedicado a salvar o parque.
Imagem do banner: Trilha dentro do Parque Nacional e Histórico do Monte Pascoal. Foto: André Olmos
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