Valor Econômico, Especial, p. B2 - 06/11/2020
FT: Ilegal e sofisticada, a nova corrida do ouro na Amazônia
Há um sistema motorizado para tirar o ouro de profundas cavernas e pistas de pouso abertas na floresta para levar a carga
Por Bryan Harris, Sam Cowie e Gideon Long, Financial Times
São Paulo, Santarém e Bogotá
Quando helicópteros militares brasileiros sobrevoaram a Reserva Biológica de Maicuru no Estado amazônico do Pará, em outubro, descobriram uma operação de mineração ilegal que surpreendeu pela sofisticação.
Havia um sistema motorizado para tirar o ouro das profundas cavernas onde era escavado e pistas de pouso abertas na floresta para levar a carga.
"O acesso a este local é apenas por avião, não há outra forma. Então, para estruturar uma operação aqui, primeiro você precisa construir uma pista de pouso e, depois, ter aeronaves", disse Gecivaldo Vasconcelos, chefe da Delegacia da Polícia Federal em Santarém, uma cidade portuária fluvial. "Isso requer investimento, não é algo de pequena escala."
Nos anos 80, perto do fim da ditadura militar brasileira, a Amazônia viveu uma voraz corrida do ouro, que atraiu milhares de pessoas pobres que procuravam o metal com ferramentas manuais em uma imensa mina a céu aberto. As cenas medievais de brutalidade da mineração desenfreada e a destruição irresponsável deixada em sua esteira chocaram o mundo em uma época que o destino da floresta amazônica começava a se tornar tema de preocupação mundial. Passados 30 anos, mineradores ilegais voltaram a confluir para a Amazônia com a mesma cultura do "fique rico rápido". Desta vez, porém, eles também vêm trazendo maquinário pesado e conhecimento financeiro.
Enquanto a cotação do metal precioso disparava durante a crise do coronavírus, a produção na Amazônia acompanhava o ritmo. Boa parte do ouro é exportada, a maioria, para países ocidentais, como Reino Unido, Estados Unidos e Canadá.
Grandes áreas de terras supostamente protegidas vêm sendo devastadas para dar espaço a equipamentos modernos de extração do metal. Uma área de floresta tropical equivalente ao tamanho de mais de 10 mil campos de futebol foi destruída em 2019 por mineradores ilegais, segundo o Ibama, a agência federal de proteção ambiental, um aumento de 23% em comparação a 2018. Isso faz parte de um aumento generalizado no desflorestamento da região amazônica.
Para processar o ouro, os mineradores usam mercúrio, que acaba fluindo para rios e contaminando o ar, afetando comunidades locais e sua produção. Alguns reclamam de uma série de doenças terríveis e até de um aumento no número de abortos espontâneos, de acordo com promotores federais.
Com a mineração ilegal, também vem a violência. Várias tribos indígenas na Amazônia brasileira, incluindo os mundurucus e os ianomâmis, estão sob constante ameaça de mineradores, frequentemente, armados e, algumas vezes, trabalhando para o crime organizado. Assassinatos são comuns, segundo a polícia. A violência atravessa fronteiras nacionais. A Polícia Federal diz que grupos criminosos atuando no Brasil têm conexões próximas com a Venezuela, onde uma região mineradora no sul do país é dominada pelo crime organizado e a mão de obra forçada é prática comum, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU) e várias organizações não governamentais. Boa parte desse "ouro de conflito" é contrabandeado da Venezuela via Colômbia, mas também para a Amazônia brasileira, onde pode ser facilmente lavado, vendido e, no fim, exportado para o mundo a partir de São Paulo. "O risco do ouro ilegal é que o dinheiro pode ser usado para promover mais ilegalidades, como tráfico de drogas e armas e até terrorismo", disse o diretor da Agência Nacional de Mineração, Eduardo Leão.
Nas últimas semanas, a polícia brasileira realizou uma série de operações para coibir os mineradores ilegais, as rotas de contrabando pelas fronteiras e os serviços de lavagem, que permitem ao ouro ilegal entrar no sistema financeiro mundial. A ofensiva na reserva Maicuru, uma operação conjunta da polícia e dos militares, que foi concluída com a explosão da pista, foi uma de muitas das autoridades na Amazônia. Dias antes, 60 policiais federais cumpriram 28 mandados de prisão contra membros de uma "organização criminosa" que atuava entre as fronteiras e, segundo as autoridades, contrabandeava dezenas de milhões de dólares em ouro e dinheiro entre a Venezuela, o Brasil e a Guiana. Embora a luta da polícia comece a ganhar mais força, uma vitória das autoridades ainda está longe de ser garantida. "Há uma ausência da lei, da regulamentação", diz Paulo de Tarso, promotor federal em Santarém. "Nosso trabalho é como tentar secar gelo".
Tarso e seus colegas, parte de uma pequena equipe de investigadores às voltas para conter os crescentes níveis de crimes ambientais, estão isolados. A capacidade de ação dos poucos policiais locais é sobrepujada pela imensidão e pelos rigores da região, enquanto as agências de proteção ambiental do Brasil (historicamente baluartes contra a destruição da maior floresta tropical do mundo) têm sido privadas de recursos e de pessoal desde que Jair Bolsonaro assumiu como presidente do país em 2019.
Um agente armado do Ibama, que todos os dias fica praticamente em jogo de gato e rato para capturar os mineradores de ouro nas profundezas da floresta, descreve de forma mais incisiva. "Os destruidores da Amazônia foram fortalecidos", diz. "Está ficando cada vez mais perigoso e consideramos iminentes grandes conflitos."
O efeito da covid-19 nos preços
Desde que a pandemia da covid-19 levou a cotação do ouro às alturas, a produção e as exportações do metal no Brasil aumentaram. Entre janeiro e setembro de 2020, o país exportou quase US$ 3,4 bilhões em ouro, aproximadamente o mesmo que em todo 2019, segundo o Ministério da Economia. Já em comparação ao período de janeiro a setembro de 2018, as exportações cresceram 60%. A cada ano, o Brasil produz cerca de 100 toneladas de ouro, das quais cerca de 35 toneladas vêm de pequenos mineradores, conhecidos como garimpeiros, que têm licença para explorar partes limitadas da Amazônia. O ouro minerado ilegalmente, porém, muitas vezes é lavado e acaba entrando nessa conta oficial ou contrabandeado para a Venezuela e Guiana, de forma que os investigadores não tem uma estimativa clara da produção ilegal de ouro. Larissa Rodrigues, do Instituto Escolhas, um grupo sem fins lucrativos que investiga o assunto, estima que cerca de 15 toneladas de ouro têm procedência ilegal. "Parte disso entra no sistema financeiro. No Brasil, temos muita atenção internacional à rastreabilidade da carne bovina ligada ao desflorestamento, porque exportamos muito para a Europa. Mas, com o ouro, isso não ocorre de forma alguma", diz.
A operação que encontrou e destruiu a pista clandestina foi apelidada de "Ouro Frio", uma resposta sutil à gíria dos garimpeiros que "esquentam" o ouro quando conseguem lavá-lo no sistema financeiro ou no mercado de joias. O processo é simples. "Um sujeito tem ouro em suas mãos, mas não tem documentação - porque muitos extraíram o ouro de lugares que não são legais", diz Vasconcelos. "Quando chega a hora de vender o ouro, ou ele apresenta um documento falso ou a própria loja compradora produz o documento. "Nesse momento, o ouro é comprado por uma empresa oficial, que declara sua procedência como sendo de uma mina legítima", acrescenta. "Então, o ouro entra no sistema como se fosse legal. Foi 'esquentado'." O processo é muitas vezes feito a caneta, sem bases de dados digitais para rastrear os infratores ou para encontrar provas contra os compradores, que, na teoria, são regulamentados pelo Banco Central e pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
Promotores federais fazem campanha há anos para que Banco Central e a agência de mineração idealizem um novo sistema, mas há pouca motivação política. Bolsonaro manifesta regularmente apoio público à abertura da Amazônia para a mineração e é crítico das amplas terras protegidas garantidas às tribos indígenas. O Banco Central e a Agência Nacional de Mineração não responderam a pergunta sobre o tema. A CVM informou que está "modernizando permanentemente" a regulamentação, de acordo com sua experiência supervisora e as "demandas dos participantes do mercado e da sociedade como um todo". Rodrigues diz que o governo não tem ajudado em nada. "Eles estão fazendo propostas para liberar a mineração e falando com os garimpeiros no local de produção", afirma. "Isso funciona como um sinal para que a ilegalidade continue."
O agente do Ibama resume a situação melancolicamente: "De onde vem todo o ouro?", pergunta. "Se você pegar apenas as minas legais, não daria para produzir todo o ouro negociado no mundo hoje. Ninguém liga para a origem do ouro"
Lobby pró-mineração
Em sua busca pelo metal precioso, José Antônio Pereira dos Santos passou quase 50 anos à margem da lei, até fevereiro deste ano quando recebeu uma licença oficial do governo para escavar na Amazônia. À frente do novo "boom" do ouro na região, Santos emprega uma equipe de trabalhadores e de equipamentos pesados e mantém uma pista de terra batida que ele usa para transportar para as cidades da região os 5 quilos de ouro legal que explora por mês. Tais negócios são cada vez mais a espinha dorsal de muitas comunidades pobres amazônicas, onde a extração rudimentar de recursos, incluindo a mineração e a exploração de madeira, frequentemente são o único meio de subsistência. "Setenta por cento da atividade econômica da região depende do ouro. Aqueles que não dependem dele diretamente, dependem indiretamente. Ele move nossa economia", diz Wescley Tomaz, vereador de Itaituba, município minerador do Pará conhecido como "Cidade Pepita".
"Todo mundo fala em preservar a Amazônia, mas somente aqueles que vivem aqui podem cuidar da Amazônia. As pessoas de Brasília, São Paulo, da Europa não sabem como as coisas funcionam aqui", diz o vereador. Valmir Climaco, prefeito da cidade, acredita que se trata de uma questão de espírito animal: "Quando ouro é descoberto em uma área, não há nada no mundo capaz de impedir garimpeiros de extraí-lo." Os dois homens apoiam a liberalização da indústria mineradora na Amazônia e Tomaz, em particular, está à frente do lobby junto a Bolsonaro e ao Congresso para a aprovação da legislação. Em outubro, grupos pró-mineração bloquearam uma importante via de transporte de grãos na região para promover sua causa. Essa campanha, porém, despertou a oposição de grupos indígenas locais e de ambientalistas, que afirmam que a legalização de mais atividades mineradoras estimulará ainda mais a destruição da floresta, que já aumentou muito no governo Bolsonaro.
"Há um grande impacto quando garimpeiros entram em contato com as populações indígenas. Eles trazem violência e produzem conflitos dentro das comunidades", afirma Luiz Jardim Wanderley, professor de geografia da Universidade Federal Fluminense. Ele acrescenta que alguns povos indígenas abraçaram a mineração como um meio de obter renda, criando uma divisão entre as comunidades tradicionalmente ambientalistas. "Estamos vendo nesse momento uma cisão na tribo mundurucu entre aqueles que querem o garimpo e aqueles que não querem", diz. Os métodos dos garimpeiros geralmente também são grosseiros e não incluem o levantamento adequado dos depósitos. Como resultado, grandes áreas de floresta são destruídas desnecessariamente na busca por apenas umas poucas pepitas, acrescenta o professor Wanderley. Para Tarso, o promotor federal, os garimpeiros - e os investidores endinheirados que estão por trás de todos eles - já se beneficiam de uma "legislação favorável e leniente" que os permite "lucrar à custa da sociedade". "Ficamos com o fardo de rios poluídos, mercúrio nos rios, populações locais ameaçadas pela violência", afirma.
O "arco minerador" da Venezuela
Para pesquisadores internacionais, o comércio do ouro no Brasil tem um lado ainda mais controvertido: seus laços próximos com a Venezuela. Com a economia da Venezuela em colapso e a receita de seu principal produto de exportação, o petróleo, secando, o governo de Nicolás Maduro estabeleceu um "arco minerador" na margem sul do rio Orinoco em 2016. A ideia era explorar o ouro, os diamantes e o coltan [uma mistura dos minerais columbita e tantalita] existentes na área. Esse arco cobre 12% do território da Venezuela - uma área do tamanho de Portugal - e por estar no sul, o Brasil é um ponto de saída natural do outro contrabandeado. A área é notoriamente violenta. A ONU já registrou casos de um garimpeiro que foi espancado em público pelo roubo de um botijão de gás; um jovem que levou tiros nas duas mãos por ter roubado um grama de ouro e um garimpeiro que teve uma das mãos decepadas por não declarar uma pepita de ouro. Alguns ativistas afirmam que os recursos extraídos da região deveriam ser acompanhados das palavras "sangue" e "conflito".
"Grande parte do arco minerador é controlado pelo crime organizado ou elementos armados", segundo um relatório da ONU publicado em julho. "Eles determinam quem entra e quem sai da área, impõem regras, infligem duras punições físicas dentro da área de mineração, incluindo extorsões em troca de proteção." O relatório detalha punições brutais impostas pelas gangues que controlam as minas, incluindo amputações por supostos roubos e mortes por suposição de espionagem. "Corpos de garimpeiros são sempre jogados em minas antigas, que são usadas como covas clandestinas", informa o relatório. Cristina Burelli, assessora da organização não governamental SOS Orinoco, diz que "a rota natural de saída de parte do ouro passa pelo Brasil. Sabemos que os garimpeiros estão vindo do Brasil. É uma fronteira muito porosa." Uma vez na Amazônia brasileira, o ouro pode ter suas origens apagadas com os mesmos métodos usados pelos garimpeiros ilegais, antes de entrar no mercado global. Os lucros, enquanto isso, voltam pela fronteira, geralmente pelas mãos de jovens recrutas.
"Entre 70% e 90% do ouro garimpado na Venezuela deixa o país ilegalmente. Ele nem chega ao alcance do Banco da Venezuela", afirma Alexandra Pinna, gerente sênior do programa da Freedom House para a América Latina, que estima que o valor do ouro contrabandeado para fora do país foi de US$ 2,7 bilhões em 2018. Para os promotores, a polícia e os ativistas, a solução de toda a equação está na criação de um sistema de rastreamento confiável, a começar pela digitalização básica das vendas de ouro em cidades como Itaituba no Brasil. Isso, porém, exigiria uma pressão econômica, política e pública coordenada - algo que não parece próximo. "Se criássemos um sistema de rastreabilidade, poderíamos exigir que as companhias provassem a origem do ouro", diz um agente federal. 'Mas ninguém está fazendo isso. E os consumidores acabam ajudando indiretamente."
(Tradução de Sabino Ahumada e Mario Zamarian)
Valor Econômico, 06/11/2020, Especial, p. B2
https://valor.globo.com/empresas/noticia/2020/11/05/ft-ilegal-e-sofisticada-a-nova-corrida-do-ouro-na-amaznia.ghtml
Garimpo:Amazônia
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