'Tive sorte de continuar vivo, agora me preocupa o clima', diz primo de Chico Mendes

FSP - https://www1.folha.uol.com.br/ - 02/08/2024
'Tive sorte de continuar vivo, agora me preocupa o clima', diz primo de Chico Mendes
Seringueiro Raimundo Mendes de Barros cria marcenaria comunitária que transforma árvores caídas na floresta em móveis e arte com apoio do Fundo Lira

Gabriella Caseff

02/08/2024

O seringueiro Raimundo Mendes de Barros teve a sorte de continuar vivo na disputa sangrenta entre trabalhadores rurais e fazendeiros que tirou a vida de seu primo Chico Mendes nos anos 1990 no Acre.

"Achavam que com a morte de Chico íamos parar, mas avançamos extraordinariamente", diz Raimundão, como é conhecido desde os tempos de sindicato.

"Deus foi generoso comigo. Tive Covid, tive AVC, perdi um pouco da energia, mas me sinto motivado de estar na floresta onde nasci e me criei."

Herdeiro da militância na região amazônica ("o sangue que corria na veia de Chico corre na minha"), com passagem pela política local, o seringueiro de 79 anos mantém críticas aos latifundiários, aos pecuaristas de São Paulo, à foice e à motosserra. E incorpora temas como mudança climática ao discurso em defesa da Floresta Amazônica.

Em junho deste ano, Raimundão realizou um sonho: inaugurou uma marcenaria comunitária no coração da Reserva Extrativista Chico Mendes, a 20 km de Xapuri (AC), mesma terra em que o ícone ambientalista levou um tiro em 1988.

O Ateliê da Floresta faz arte, móveis e utensílios com resíduos de árvores que naturalmente caem, oferecendo uma nova fonte de renda e orgulho para a comunidade. Galerias de Manaus e de São Paulo encomendam produtos da marcenaria.

O projeto tem apoio do Lira (Legado Integrado da Região Amazônica), iniciativa do IPÊ (Instituto de Pesquisas Ecológicas) que identifica e financia ações socioambientais para conservar a Amazônia.

Em quatro anos, o Lira investiu R$ 46 milhões em 50 projetos de impacto na região, com recursos do Fundo Amazônia e da Fundação Gordon and Betty Moore.

"A luta que construímos com Chico nos libertou da escravidão e do domínio do patrão. Ele sonhava que um dia os caboclos e caboclas fossem considerados iguais aos da cidade", afirma o seringueiro.

Raimundão faz um paralelo entre a vida na seringa à época de Chico Mendes e nos dias atuais nesta entrevista à Folha. Leia os principais trechos.

Como estão as ameaças à Floresta Amazônica? São as mesmas dos anos 1980? Continuam sendo um problema sério. Hoje não é só fazendeiro que derruba a floresta. Os pequenos, na ânsia de botar dinheiro no bolso, destroem a mata pela foice e pela motosserra, tiram madeira de forma clandestina e criam boi. É uma febre desgraçada.

Eu vivi a violência do latifúndio com os companheiros seringueiros. Fizemos inúmeros empates, junta para tentar parar os peões que iam derrubando tudo para o pasto. Chico tinha aprendido que era possível construir poder pela luta armada, mas não queria isso. Tinha personalidade equilibrada e sabida, orientava a não agir com violência.

O sangue que corria na veia dele corre na minha. Estávamos diante de pobres, pais de família que migravam de outros estados para fazer sua sobrevivência. Só que eles tiravam a nossa, pois vivíamos da borracha e da castanha, como nossos antepassados.

Foi grande a luta. Hoje não nos preocupamos apenas com a sobrevivência, mas com a questão climática aqui na região.

Como o clima tem afetado a vida de vocês? Vivemos uma situação perigosa e que não era normal no passado. Tínhamos meses bem determinados de chuva e meses de verão, quando não chove. Agora chove muito quando é para fazer verão. Com a tiragem das árvores, o solo fica exposto ao sol e não tem folhagem para absorver a água que cai. É um transtorno danado.

As águas correm por lugares baixos, vai aterrando tudo. E aí começa a faltar água para nossas vertentes. No ano passado, elas secaram em agosto, agora em julho já está começando. Nunca tinha visto isso desde que cheguei aqui.

É grave para nós, filhos natos da floresta, que temos consciência de que a floresta é fonte de sobrevivência.

O que vocês têm feito para encarar as ameaças da foice e do clima? Eu estou aqui bem ao lado de uma fazenda de um grupo de pecuaristas, vendedores de carne de São Paulo. Cultivar castanha, borracha, óleo da copaíba, água de jatobá e açaí nos dá condição de continuarmos aqui na floresta. Sem apoio a esses nossos produtos, as pessoas se desestimulam e partem para ser peão de fazenda, boia-fria.

Há alguns anos, nossa comunidade discutiu manejo comunitário, mas o sonho mesmo era reaproveitar restos de árvores que apodrecem na floresta. É a madeira que cai nos temporais, que morre com a faísca da chuva ou com a queda natural.

Queremos a floresta viva e nada melhor que atuar com marcenaria. Achamos um parceiro, a SOS Amazônia, que se sensibilizou com o Ateliê da Floresta.

Como vocês reaproveitam esses resíduos das árvores? Na minha colocação [área em que mora a família de Raimundão dentro da reserva] tem 9 estradas de seringa, 500 hectares de floresta, tem bastante árvore morta. Eu não uso de ambição, sou do coletivo, de fazer junto. Vamos na mata, cortamos aquelas que estão caídas e trazemos para a marcenaria. De lá sai material de decoração, de cozinha, gamela, colher, escumadeira, garfo, pilão para pimenta, uma variedade de objetos.

esse projeto tem mantido a juventude na terra? Tem 14 pessoas trabalhando no Ateliê. Estamos formando artesãos, criando uma profissão, aumentando renda e colocando mais um trocado na cesta. Mas ainda assim é uma situação delicada para os pais da floresta. Muitos de seus filhos vão para a cidade. Só um dos meus vive comigo, os outros se foram.

Apesar das questões territoriais e ambientais, a vida melhorou para as famílias? Cheguei aqui há 44 anos. O analfabetismo era demais, não sabíamos o que era saúde, não recebíamos uma assistência, era isolamento total do poder público. Só nos "alumiávamos" com o querosene ou o leite da seringa dentro da lata com areia. Só os patrões da borracha compravam e vendiam mercadoria.

A luta que construímos com Chico nos libertou da escravidão, do domínio do patrão e da violência do latifúndio perverso. Ele sonhava que um dia os caboclos e caboclas fossem considerados iguais aos da cidade. Hoje temos escola, geladeira, televisão e nossos filhos vão à faculdade. Temos a barriga cheia. Avançamos extraordinariamente.

E qual o balanço que o senhor faz da vida ao completar 79 anos? Deus foi generoso comigo. Dei conta do sindicato, da câmara [foi vereador de Xapuri por quatro mandatos] e da família. Tive oito filhos. Fui a lugares como Itália, Alemanha e Estados Unidos para falar da nossa situação e ganhar aliados.

Tive Covid, tive AVC, perdi um pouco da energia, mas me sinto motivado de estar na floresta onde nasci e me criei. Tive a sorte de continuar vivo.

https://www1.folha.uol.com.br/folha-social-mais/2024/08/tive-sorte-de-continuar-vivo-agora-me-preocupa-o-clima-diz-primo-de-chico-mendes.shtml
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