Dúvida e insegurança. Essa tem sido a reação das comunidades ribeirinhas dos rios Teles Pires e Juruena à criação do Parque Nacional do Juruena. Paulo de Souza Pereira é um deles, e apesar de muitas horas de conversa com os técnicos responsáveis pela unidade de conservação, ainda está cheio de incertezas. "Eu acho que tô entendendo, mas lá na frente é que a gente vai saber se entendeu direito mesmo", diz o ribeirinho.
O estudo socioeconômico que começou no último dia 25 já identificou a existência de oito famílias ribeirinhas vivendo dentro do parque. Pessoas que vivem na região há muitos anos, remanescentes dos ciclos econômicos da borracha. Maria Elisabeth Ramos, socióloga que está fazendo o diagnóstico socioeconômico durante a II Expedição Científica do Juruena, identificou algumas características dessas populações que parecem colocá-las como as mais frágeis no contexto social do parque e seu entorno. Além dos ribeirinhos, foi constatada a existência de seis famílias que se declaram índios apiacás e preparam-se para reivindicar a demarcação de uma terra indígena no Rio Juruena.
Elisabeth explica que o estudo socioeconômico depende da análise de todos os grupos sociais relacionados com o parque, incluindo poder público, produtores, madeireiros e garimpeiros. "Ainda não é possível fazer análises sobre as relações entre esses grupos sociais, mas pelo que estamos vendo, pode-se dizer que esses ribeirinhos são conservadores da floresta. As famílias que entrevistei estão aqui há mais de 40 anos e têm poucas áreas abertas. Eles vivem basicamente de pequenas roças de subsistência, caça e pesca para consumo próprio e algum comércio de excedentes como a farinha de mandioca".
A história de Paulo Pereira parece confirmar as informações da pesquisadora. Com 43 anos de idade, Seu Paulo mora com a esposa Raimunda, que também é sua prima, na beirada do Rio Teles Pires em uma localidade que ele chama de Três Marias. Com ela teve duas filhas, Ana Paula, 18 anos, é casada com um trabalhador de uma balsa de garimpo. A mais nova morreu de pneumonia aos dois anos.
Um dos acampamentos da expedição foi ao lado da casa dele - único ponto em que foi possível atracar, devido à cheia do Rio Teles Pires. Durante os quatro dias, Seu Paulo pôde aproveitar a presença dos gestores do parque que fazem parte da expedição para esclarecer suas dúvidas, mas ainda parece triste com a possibilidade de ter que se mudar da casa onde nasceu. "Eu sempre vivi aqui e só saio se for mesmo obrigado", afirma.
Ouvinte assíduo da Rádio Nacional da Amazônia, ele diz que ficou sabendo da criação do parque pela rádio há seis meses, quando também começaram a circular pelo rio os boatos de que aquela área tinha virado parque e que as pessoas seriam retiradas dali em breve. "Fiquei sem saber o que fazer, ouvindo dizer que não queriam ninguém dentro do parque". Morando em um lugar de difícil acesso, onde o principal veículo de comunicação são as pessoas que passam pelo rio, a desinformação e os boatos são comuns. Com a presença extremamente fraca do Estado, as pessoas têm dificuldade de saber em quem acreditar.
Com a criação da unidade de conservação, é possível que esse cenário de ausência do Estado mude, mas a realidade até o momento é de abandono. Em suas entrevistas, Elisabeth identificou que a principal fonte de assistência aos ribeirinhos são os índios mundurukus, com quem também têm uma antiga relação de parentesco. É com eles que os ribeirinhos conseguem remédios e atendimento médico quando precisam.
Para seu sustento, o ribeirinho vende peixe, farinha, galinhas e um pouco de castanha para a aldeia ou para os garimpeiros que sobem e descem o rio com frequência. Planta a maior parte do que consome, mas paga caro pelos alimentos que não produz: R$ 3 por um quilo do açúcar, R$ 7 pelo de feijão e R$ 5 pelo óleo de cozinha na vila mais próxima, na Barra do São Manoel. Apesar de todas as dificuldades, reclama apenas da falta de alternativas econômicas e da qualidade da água que tem para consumo. Ele diz que queria ter um poço artesiano, porque durante a estação seca uma balsa de garimpo opera acima de sua casa e a água desce muito suja. Sua fonte de água limpa é uma grota dentro da mata que às vezes seca.
Vila espremida
As 56 famílias da Vila da Barra do São Manoel também se sentem abaladas pela criação do Parque Nacional do Juruena. Situada na beira do Tapajós, próximo á foz do rio Teles Pires, a vila ficou espremida entre o parque, o moisaico de unidades de conservação do Apuí e a Terra Indígena Munduruku. Todos olham para o futuro com preocupação, pois os recursos econômicos disponíveis são cada vez mais escassos. "O único trabalho para os nossos filhos é o garimpo. A gente sabe que é ilegal, mas o governo nos abandonou e não temos alternativas", afirma Luís Carlos de Albuquerque, presidente da Associação Agroextrativista e Turística da Barra do Tapajós, criada pelos moradores.
Na reunião promovida pelos analistas ambientais do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) gestores do parque, no último dia 9 de março, a comunidade manifestou seu desgosto com a unidade de conservação. Eles afirmam que a porção que ficou fora das áreas protegidas, portanto as únicas legalmente disponíveis para suas atividades, é pequena demais para suas necessidades e reivindicam a desafetação de uma parte da unidade de conservação na divisa com a Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Bararati, criada pelo governo do Amazonas. Além disso, a comunidade não sabe exatamente qual o tamanho e quais são os limites dessa área disponível.
Há muitos anos os beiradeiros, como são conhecidos, sentem a pressão da grilagem de terras que avança pelo norte de Mato Grosso. Em 2004, a comunidade relata que houve um grande movimento de grilagem de terras na região. Luís Carlos conta que na época, eles procuraram sem sucesso o Ibama e a prefeitura de Apuí, município ao qual pertencem, para denunciar a grilagem e buscar ajuda. "O governo não pensou no povo daqui da Barra. Nós sempre protegemos sozinhos esse lugar dos grileiros, nunca tivemos a ajuda de nenhum governo", se revolta Luís Carlos. A solução, segundo ele, foi defender o território com seus próprios recursos.
A falta de infraestrutura da vila corrobora com a tese local de abandono dos governos. A escola oferece apenas ensino fundamental e o Posto de Saúde possui um agente de saúde e outro de endemias. Médico só a cada dois meses ou três meses. A vila espera a chegada do programa Luz para Todos para substituir seus geradores a diesel, pois é comum passarem dias sem luz pela falta do combustível. Na vila também há um telefone público, mas nem sempre funciona.
Remanescentes dos soldados da borracha, da década de 1940, os beiradeiros hoje vivem em uma situação bastante precária. Plantam suas roças para sobrevivência e trabalham, em sua maioria, como garimpeiros. "A gente sabe que poderia viver do turismo e do extrativismo, mas do jeito que estão as coisas não há mercado. Isso tudo vai demorar e até lá a gente vai viver do que?", questiona o presidente da associação dos beiradeiros.
A vila foi alvo de um projeto de assentamento do Incra em 2005, congelado com a criação do parque. A associação reclama que chegou a receber o recurso destinado pelo órgão para a construção das casas dos assentados, mas o dinheiro ficou bloqueado.
Durante a reunião com os funcionários do parque, que tinha o objetivo de levar informações e esclarecimentos para a comunidade, o rol de reclamações foi grande. As áreas tradicionalmente usadas para caça e pesca destinadas a alimentação e venda local também ficaram dentro do parque; bem como o Morro da Navalha, fonte da palha de babaçu que tanto os beiradeiros quanto os índios utilizam para cobrir suas casas. Informados sobre as restrições de uso dos recursos naturais do parque, eles estão preocupados com a falta opção, cercados como estão por áreas protegidas.
Roberta Freitas, analista ambiental do ICMBio que faz parte da equipe do Parque Nacional do Juruena, reforça que nenhuma das comunidades será impedida de realizar suas atividades tradicionais até que se tenha alternativas para que elas provenham seu sustento sem usar os recursos naturais do parque. "Nós não podemos criar falsas expectativas nessas comunidades. Sabemos que o turismo tem um grande potencial de trazer desenvolvimento para eles, mas nesse momento ainda não temos uma rede de alternativas construídas para oferecer às pessoas", afirma. O uso da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Bararati, criada pelo governo do Amazonas na divisa com o parque também é vista como uma boa alternativa e será incentivada pelo ICMBio, que já está em contato com os gestores dessa reserva.
O diagnóstico para o plano de manejo do Parque Nacional do Juruena é fruto de uma cooperação técnica entre Instituto Centro de Vida, WWF-Brasil e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, Programa de Áreas Protegidas da Amazônia (Arpa) e Ministério do Meio Ambiente; realizada em parceria com a Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Universidade Federal do Acre (UFAc).
UC:Parque
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