Favelas, floresta e incertezas na rota da obra mais cara e longa de São Paulo

OESP, Metrópole, p. C1, C3 - 08/05/2011
Favelas, floresta e incertezas na rota da obra mais cara e longa de São Paulo
Ao longo dos 44 quilômetros do atual traçado do Trecho Norte, há de antigos sitiantes a oportunistas que só buscam indenizações

Diego Zanchetta e Paulo Saldaña

É em um morro no alto da Serra da Cantareira, a 26 quilômetros do centro de São Paulo, que tem início o futuro Trecho Norte do Rodoanel. O atual traçado, de pouco mais de 44 km, passa pelo meio de favelas e sítios, cruza topos no meio da mata com 590 metros de altitude em relação ao Rio Tietê e atravessa uma dezena de córregos até chegar a Arujá, onde se interliga com a Rodovia Presidente Dutra.
A construção de uma obra de R$ 5,8 bilhões no meio de uma área de preservação ambiental tem rendido questionamentos jurídicos semanais para o governo do Estado. A pressão já resultou em quatro alterações no traçado. Ambientalistas e moradores apreensivos buscam frear a construção junto a órgãos como Ministério Público e Defensoria do Estado. De olho nas eleições de 2012, políticos também prometem ajuda às famílias para barrar as remoções - 2,7 mil moradias devem ser desapropriadas.
Em seu percurso acidentado e irregular no meio da mata, o Trecho Norte está sempre ao lado ou bem perto de uma favela. Para o motorista que vai sair da Rodovia dos Bandeirantes e entrar na pista, na altura do número 8.700 da Avenida Raimundo Pereira de Magalhães, a vista descortina um emaranhado de barracos que se estende por morros desde o início da estrada na capital, em Perus, até quase o fim, já perto de Guarulhos.
Ao fundo das favelas, o visual em segundo plano é de um gigantismo impressionante: a metrópole, o Rio Tietê e um chapéu de fumaça sobre a imensidão de prédios no horizonte. Em alguns momentos, o caminho chega a lembrar a geografia dos morros cariocas, com casas construídas em ladeiras cercadas por mato e ao lado de enormes rochas. O clima tem frescor serrano, úmido, com friozinho agradável. Tanto que o cheiro da mata predomina ao longo do traçado, apesar de as ocupações não terem esgoto ou coleta regular de lixo.
No alto dos morros do Parque Taipas, na altura do km 6 do futuro Rodoanel, pequenos fios de água brotam das pedras e garantem o abastecimento da favela que não para de crescer logo abaixo. A ocupação com clima rural vai sumir para a construção da rodovia, o que tem levado apreensão aos moradores. "Comprei o terreno em 1994, sem escritura. Não tenho medo de sair, já faz uns dez anos que falam desse Rodoanel. Acho que essa estrada não sai mais", diz o agricultor Celso Salvador de Oliveira, de 53 anos. Ele é dono de um sítio que começa em uma rua aberta por ele mesmo e acaba em uma rocha da serra.
Oportunismo. O medo das famílias se mistura ao oportunismo de alguns vizinhos de áreas que não serão desapropriadas. A reportagem do Estado flagrou três terrenos sendo abertos no meio da mata, no Parque Taipas, na altura do número 1.670 da Avenida Fernando Mendes de Almeida. Segundo moradores, são pessoas interessadas em receber indenização do governo.
"O pessoal não para de abrir terreno no meio da serra. É gente que nem mora aqui e só quer a indenização", diz Sonia Nascimento, de 32 anos. Ela é dona do único mercadinho que funciona no ponto alto da serra ocupado por barracos. "Gosto do morro, acostumei a morar no frio, sem barulho. Não quero sair."
Com ou sem Trecho Norte, é difícil acreditar que as franjas verdes que restaram da Cantareira não vão desaparecer. As favelas incham floresta adentro e a todo momento é possível ver, no alto da serra, clarões de terra abertos e preparados para receber novos barracos. O governo, por sua vez, defende que a estrada vai funcionar como "barreira" contra novas ocupações e diz prever R$ 25 milhões em compensações ambientais - 0,5% do custo do Rodoanel, estimado em R$ 5,8 bilhões.
Condomínios. O traçado segue um caminho sinuoso perto do Horto Florestal. Nessa parte, em vez de favelas, é possível ver alguns condomínios de luxo também construídos dentro da serra e os sobrados no alto do Jardim Tremembé. Mas o Rodoanel vai passar ao lado dos condomínios, que não serão desapropriados.
O trecho a partir do Horto contorna pedreiras nas encostas da serra e só atinge moradias de baixa renda, o que também se repete no Jaçanã e dentro de Guarulhos. Nesse município da Grande São Paulo, a Dersa já realizou duas alterações no projeto, desviando a pista de uma área de proteção ambiental, de moradores antigos e de um terreno da Prefeitura reservado para uma estação de tratamento de esgoto. Em outro desvio, o governo evitou que a obra isolasse um bairro da cidade - com a mudança, porém, o trajeto passará por uma área verde de proteção permanente.
Decisão. Polêmicas à parte, quem vai bater o martelo sobre o trajeto final é o Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema), órgão responsável pelo licenciamento ambiental. As apostas são de que o conselho não vai contrariar a vontade do governo, como já ocorreu em grandes obras polêmicas mais recentes - casos da ampliação da Marginal do Tietê e da construção do Trecho Sul do Rodoanel.


Dersa mapeia a região para conter novas invasões
Rodoanel Norte vai desapropriar 1.400 imóveis regulares e 1.300 irregulares; famílias sem escritura são as que têm mais medo

Diego Zanchetta e Paulo Saldaña

Com uma estimativa de 2.700 moradias a serem removidas ao longo do trajeto - número questionado por líderes comunitários da região -, a Desenvolvimento Rodoviário S.A. (Dersa) diz que está "blindada" contra novas ocupações provocadas pelo anúncio das obras do Trecho Norte do Rodoanel. A empresa conta com levantamentos de fotos aéreas para evitar o pagamento a invasores recentes.
"Posso comparar as imagens e dizer que determinado morador não está há cinco anos onde diz que vive", disse ao Estado o presidente da Dersa, Laurence Casagrande Lourenço.
Com base nas imagens, a empresa faz uma contagem de telhados para, em seguida, avaliar também a qualificação das residências. Depois, consegue traçar uma estimativa do número de famílias que vive nesses locais. Lourenço ressalta que os trabalhos de campo só serão iniciados após o licenciamento da obra, momento em que as áreas de remoções serão oficializadas pela empresa.
A Dersa vai adotar dois modelos de remoção: desapropriação para quem tem título de propriedade e reassentamento para quem não tem a escritura. A previsão de gastos para os dois projetos é de R$ 733 milhões - cerca de 13% do orçamento total de R$ 5,8 bilhões do projeto.
Para uma família que não tem título de propriedade, o pagamento médio é de R$ 5 mil de indenização, encaminhamento para Auxílio-Aluguel e, futuramente, para uma unidade habitacional. "Não passaremos por cima de ninguém. Será por concordância ou determinação judicial", diz o presidente da Dersa.
Conflitos. Segundo estudos da empresa, as pistas do Rodoanel na região norte vão passar por 1.400 imóveis regulares e 1.300 casas irregulares - cujos moradores não têm escritura. São essas famílias as que mais estão assustadas no processo.
"Vejo os reassentamentos como o principal conflito. Porque as pessoas moram no local há muitos anos, têm uma vida ali, mas não têm o título de propriedade", afirma o ambientalista Carlos Bocuhy, ex-integrante do Conselho Estadual de Meio Ambiente (Consema) e crítico do projeto. "Quando colocam no papel o traçado, não se tem uma sensibilidade dos transtornos. Os deslocamentos das famílias têm de ser feitos com respeito, dentro do ciclo comunitário das pessoas, levando em conta a escola das crianças, por exemplo."
A líder comunitária Duilia Domingues Simões, de 49 anos, é uma das envolvidas no processo que reclamam da falta de um plano já traçado para as famílias. "Ninguém sabe para onde vai, se será atendido realmente. Não vi nenhum cidadão a favor do Rodoanel e, pelo que eu sei, estrada não é para ser construída em área urbana, em cima das pessoas", diz ela, que é conhecida como Du e vive no Jardim Paraná, na Brasilândia. A casa dela também está na rota da via.
A auxiliar administrativa Sonia Barbosa, de 49 anos, líder entre os moradores de Taipas, também reclama. "A gente não tem nenhuma garantia e vimos em outros trechos do Rodoanel pessoas que receberam R$ 3 mil e tiveram de ir para outro lugar. Além disso, tem um impacto indireto em outras moradias que não está sendo visto pela Dersa."
A empresa informa que é importante adiar ao máximo o anúncio final do traçado para evitar especulação imobiliária. Além disso, a política de moradia só será mensurada depois do licenciamento do projeto.
Enquanto se debate o verdadeiro impacto que os 44,2 km do Rodoanel terão sobre a região, o histórico de ocupações na zona norte deixa preocupações. Na região da Brasilândia, que registra o maior impacto ambiental sobre o Parque da Cantareira, os 80 mil metros quadrados de expansão nos últimos dez anos foram ocupados por famílias expulsas por causa de outras obras públicas.
Expulsão. O diagnóstico é do Núcleo de Estudos da Paisagem-Brasilândia, do LabCidade da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. "Acompanhamos a expansão com fotos aéreas. No trabalho de campo e nas entrevistas com moradores, percebemos a dinâmica de expulsão da própria região por causa de obras públicas", disse a pesquisadora Cecília Maria de Morais Machado, que coordena o núcleo e estuda a região desde 2004.
Segundo Cecília, obras de piscinão, escola e até um telecentro na própria região provocaram a transferência das pessoas mais carentes para novas fronteiras em áreas verdes. "A serra é um estoque de terra para o mercado informal. E o Rodoanel pode piorar a situação."


Famílias de Taipas e Brasilândia são pressionadas a sair

Pelo menos 300 famílias da região norte, moradoras dos bairros de Taipas e Jardim Paraná, receberam nos últimos dias notificações da Prefeitura de São Paulo para deixar suas casas.
"Moro há mais de 14 anos aqui e nunca apareceu ninguém. Agora que o Rodoanel vai passar, já vieram três vezes dizendo que ou saio e aceito R$ 5 mil e a bolsa-aluguel ou vão me despejar", diz a desempregada Rita de Cássia Alves de Oliveira, de 35 anos. Rita mora com o marido e um filho em uma casa no Jardim Paraná - em 2007 teve outros dois filhos assassinados no Parque da Cantareira. "Estou desesperada, não tenho aonde ir. Depois do que aconteceu, nem tenho condições de trabalhar."
O pedreiro José Justino da Silva, de 31, diz que a Defesa Civil informou que uma pedra vizinha à sua casa é um risco e ele tem de sair. "A pedra sempre esteve aí, mas só falaram agora."


Guarulhos quer ligação do Rodoanel com o centro

Diego Zanchetta e Paulo Saldaña

Assim como fez São Paulo, a Prefeitura de Guarulhos quer novas mudanças no Rodoanel. A principal exigência é uma ligação da rodovia com o centro da cidade, o que o projeto não contempla até agora, além de construções antecipadas de dois aparelhos públicos e de uma maior compensação ambiental e social.
Os pedidos constarão em parecer do município, que deve ser entregue até terça-feira. O documento é parte obrigatória do processo de licenciamento pelo Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema).
A solicitação de Guarulhos é exatamente contrária à reivindicação feita pela capital paulista. A Prefeitura de São Paulo pediu exclusão da ligação da estrada com a Avenida Inajar de Souza, conforme o Estado revelou. A alteração foi acatada pela Dersa e está em análise no Consema.
De acordo com o secretário de Governo de Guarulhos, João Roberto Rocha Moraes, a medida seria benéfica à cidade. "Temos um movimento de cargas, que é importante para a cidade. Supondo que não seja viável essa alternativa, queremos pelo menos um acesso para o centro da cidade no encontro da via com a Fernão Dias ou a Dutra."
No traçado atual, o Reservatório de Água do Bananal e a Escola Municipal Nazira Abbud Zanardi, no Jardim Paraíso, serão atingidos. O parecer de Guarulhos vai exigir que um novo reservatório e também uma escola nova, na mesma região, sejam construídos antes de a pista chegar. "Não podemos deixar a população sem água nem escola."
A Dersa informou que não vai se manifestar antes de receber o documento. Entretanto, já está disposta a adiantar a construção do reservatório. Sobre a escola, não houve resposta.
Compensação. O secretário diz que Guarulhos não quer inviabilizar a obra, mas reafirma que vai brigar pelo interesse do município. "Não há a mínima possibilidade de aprovarmos algo que atrapalhe a população."
Como o trajeto estará 52% em Guarulhos, a Prefeitura quer a mesma proporção em compensações de todos os tipos. "É justo, porque os impactos da operação vãorefletir aqui."


Exemplo da Anchieta amedronta especialistas
Ambientalistas temem na Cantareira repetição de processo de ocupação na Serra do Mar por antigos operários

Diego Zanchetta e Paulo Saldaña

O histórico de ocupação na Serra do Mar, entre São Paulo e Santos, é sempre lembrado por ambientalistas que temem uma devastação semelhante na Cantareira, após o início das obras do Trecho Norte do Rodoanel. Inaugurada em 1949, a Via Anchieta atraiu, ao longo de três décadas, 7 mil famílias para áreas de preservação permanente localizadas dentro da serra.
A ocupação na Serra do Mar começou com o fim da obra na Anchieta. Milhares de operários que ajudaram a construir a estrada montaram acampamentos provisórios nos morros da floresta. Mas, quando a estrada foi aberta, os trabalhadores, na maior parte nordestinos, resolveram ficar nos acampamentos - a maioria deles se transformou nos "bairros-cota". Havia na época vasta demanda por mão de obra nas indústrias que chegavam a Cubatão, o que também agravou o adensamento nas áreas verdes.
Hoje o governo gasta mais de R$ 1 bilhão em um programa que prevê a retirada dessas famílias. Desde 2007, um efetivo de 300 policiais militares também tenta evitar novas invasões dentro do Parque Estadual Serra do Mar. As famílias removidas vão morar em conjuntos habitacionais que estão sendo construídos em Santos e Peruíbe.
Para ambientalistas, o mesmo risco de degradação corre a Cantareira com o Rodoanel. Eles citam como exemplo mais recente o Trecho Oeste do anel viário, inaugurado em 2002, que contribuiu para o avanço de condomínios em áreas de preservação nos municípios de Cotia e Embu. "Não dá para imaginar que essa obra não vai causar maior expansão nas favelas. É só ver o que aconteceu no Trecho Oeste, que recebeu vários condomínios nos últimos anos", diz o ambientalista Carlos Bocuhy.
Nos condomínios ao lado do Trecho Oeste erguidos antes da pista, como o Residencial Tamboré 1, moradores reclamam que a concessionária não colocou barreiras acústicas na estrada. "Nossa vida virou um inferno. É impossível dormir de madrugada com o barulho dos caminhões", reclama Marina Leite, de 32 anos. Após longa batalha judicial dos moradores, a concessionária decidiu construir um muro de isolamento acústico entre o km 12 e o km 14 da pista. A obra tem previsão de ser concluída no fim do primeiro semestre.
Outro transtorno enfrentam moradores em condomínios de Embu construídos ao lado do Trecho Oeste. Eles reclamam que o movimento de caminhões no Rodoanel causa trepidações e rachaduras nas casas.
Defesa. O governo do Estado argumenta que o Trecho Norte não terá entradas e saídas de fácil acesso, a exemplo do Trecho Sul - a pista que interliga as Rodovias Régis Bittencourt e Imigrantes não registra ocupações no entorno desde sua inauguração, em março de 2010.

OESP, 08/05/2011, Metrópole, p. C1, C3

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Estradas:Rodoanel

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