O Globo, País, p. 3-4 - 08/12/2013
Sonho que se apaga em Xapuri
Com avanço da pecuária e de motosserras, borracha perde espaço na terra do ambientalista
CHICO OTAVIO
Enviado especial
chico@oglobo.com.br
XAPURI (AC). Durante curso recente de formação de lideranças no Acre, um jovem seringueiro foi convidado a expressar, em desenho, o que pensava sobre o futuro da Reserva Extrativista Chico Mendes, um bolsão verde de 970 mil hectares que atravessa seis municípios e simboliza a luta ambientalista no estado. O rapaz, de uma comunidade tradicional da floresta, não hesitou: em traços rápidos, desenhou um prédio.
A reserva é um dos legados da tragédia de 22 de dezembro de 1988, quando um tiro de escopeta encerrou, em Xapuri (a 175km de Rio Branco), a luta de Chico Mendes contra a destruição nos seringais do Acre. Ele acreditava que a sobrevivência do caboclo dependia da mata em pé. Vinte e cinco anos depois, este sonho padece sob a pata do boi e a lâmina das motosserras. Enquanto a borracha sucumbe à lógica de mercado, a pecuária, a extração de madeira e a modernidade conquistam corações e mentes dos povos da floresta, incluindo seringueiros que lutaram ao lado de Chico.
Até a entidade que o líder seringueiro presidia quando assassinado admite agora como sócios dois filhos do pecuarista condenado por matá-lo. Guinaldo e Darlyzinho, filhos de Darly Alves da Silva, punido com 19 anos de prisão por ter sido o mandante do crime, estão entre os 3.500 sócios do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri. O atual presidente, José Alves da Silva, disse que não havia como barrar os dois irmãos, já que preenchiam todas as exigências legais de sindicalização. Com o aval do sindicato, Guinaldo e Darlyzinho passaram a ter acesso a linhas de crédito rural.
- Chico Mendes era um defensor da floresta. Mas não era o dono do sindicato. O sindicato pertence aos associados. Não vimos motivos para eles (filhos de Darly) não serem sócios - argumentou o presidente.
Produção de 12 mil toneladas 1990 despencou para 470 toneladas
Alves da Silva, um ex-seringueiro de 36 anos, disse que a chegada da pecuária na região representou o declínio da borracha. Hoje, afirma o dirigente, apenas 10% dos filiados à entidade continuam extraindo o látex, cujo principal comprador local é a fábrica de preservativos masculinos Natex, construída pelo governo estadual em Xapuri. A criação de gado, no entanto, mobiliza 80% dos associados e consolida-se, de longe, como o carro-chefe da economia da região, secundada pela indústria madeireira.
- O que está acontecendo hoje no Acre não tem nada a ver com o sonho de Chico Mendes, mas com o seu pesadelo - lamenta o cientista social Élder Andrade, professor da Universidade Federal do Acre (Ufac).
O drama a que se refere Andrade pode ser medido pelos indicadores econômicos do estado. Dados do IBGE sobre extração vegetal informam que em 1990, logo após a morte de Chico Mendes, o Acre produziu 12 mil toneladas de borracha natural. Em pouco mais de duas décadas, a quantidade encolheu para 470 toneladas anuais (2012). Na contramão desse ocaso, um estudo de Élder Andrade revela que a pecuária extensiva de corte e a exploração de madeira praticamente triplicaram em uma década. O rebanho bovino passou de 800 mil para quase três milhões de cabeças. A produção de madeira saltou de 300 mil para um milhão de metros cúbicos anuais.
Ao contrário da borracha e de outros produtos naturais, cujo mercado paga pouco e a longo prazo, uma novilha ou tora de madeira retirada clandestinamente é remunerada à vista. Um quilo de látex rende ao seringueiro R$ 7,80. A lata de 18 quilos de castanha vale R$ 23 - as cooperativas pagam um pouco mais aos fornecedores de castanha, mas só na safra seguinte. Já um bezerro recém-nascido pode render ao seringueiro R$ 300, sem que ele tenha de cumprir as jornadas exaustivas de trabalho na mata.
A madeira ilegal segue a mesma lógica. Se o mercado oficial paga por metro cúbico certificado no Acre R$ 60, o mesmo produto, retirado clandestinamente, pode render até R$ 350. As espécies mais procuradas são o cumaru, a garapeira, a mirindiba, o cedro-rosa e a cerejeira. O ipê, mesmo em áreas protegidas, já está próximo da extinção.
- Não somos contra a preservação, mas defendemos o direito das famílias daqui à sobrevivência. Está provado que as grandes poluidoras do planeta são as grandes mineradoras e a indústria petrolífera. Ninguém é reprimido. Quem tem de pagar, então, é o pequeno produtor do Acre? - critica Alves da Silva, do sindicato de Xapuri.
Brasileia: 32 marcenarias e nenhuma área de extração legal
Em tese, a indústria moveleira do Acre só está autorizada a trabalhar com madeira certificada, procedente de áreas de exploração regularizadas. Porém, a engenheira agrônoma Silvana Lessa, chefe da Reserva Extrativista Chico Mendes (governo federal), alertou que Brasileia, cidade vizinha à de Xapuri e onde Chico Mendes iniciou a carreira sindical, abriga 32 marcenarias sem que exista, em toda a região, uma única área de extração madeireira legalizada.
Brasileia é também o município do Alto Acre onde Osmarino Amâncio, o serigueiro que chegou a ser apontado como sucessor de Chico e foi capa da revista americana "Newsweek", mantém a sua área ou "colocação", a Pega Fogo, no seringal Humaitá. No passado, era um dirigente conhecido pelos discursos radicais. Hoje, pelos resultados da fiscalização da reserva, Osmarino tornou-se um dos maiores fornecedores de madeiras ilegais da região. Foi punido, segundo Silvana, com "multa gigantesca", devido a 200 toras apreendidas. Processado judicialmente, Osmarino nega o corte ilegal e se diz vítima de perseguição política.
Criada em 1990, a reserva extrativista de quase um milhão de hectares tem só sete funcionários para fiscalizá-la. Dentro dela, vegetais e animais silvestres dividem espaço com dez mil pessoas e pelo menos 20 mil cabeças de gado. O último levantamento, em 2010, apontava 7% de área devastada. Mas Silvana Lessa admite que a extensão pode ser maior. Seus funcionários já descobriram dois policiais civis loteando áreas da reserva e vendendo-as ilegalmente em Brasileia, com anúncios nos jornais. Nos seringais Nova Esperança, Santa Fé e Rubicom, o desmate já ultrapassa 50% do território.
- Alguns desses loteamentos clandestinos, que têm até registro em cartório, se parecem com vilas rurais. Ali, um hectare de terra custa até R$ 1 mil - lamenta Silvana.
PT perde prefeituras históricas
Os grandes pecuaristas, facilmente descobertos pelo rastreamento dos satélites, mudaram a estratégia para chamar menos atenção. Passaram a fazer parcerias com os antigos adversários, os seringueiros, estimulando-os a formar pastos em suas pequenas propriedades, nas quais os rebanhos são fracionados. Além de esconderem-se melhor, eles também conquistam a simpatia dos vizinhos da floresta, ampliando seus domínios sem fazer alarde.
Ao longo da BR-317, que liga Rio Branco a Xapuri e Brasileia, imensos campos de pastagens estão repletos de gado. Embora a legislação que criou a reserva exija um cinturão verde de três quilômetros de raio (zona de amortecimento), já não há praticamente árvores em pé nos ramais (estradas vicinais) que levam ao coração da reserva extrativista.
O governo estadual de Tião Viana (PT) tenta frear o ritmo do desmatamento. Fez parceria com a reserva, para reforçar a fiscalização, e montou complexo industrial de madeira certificada em Xapuri, forçando assim que os seringais aprovem planos de manejo comunitário para produção de madeira certificada (retirada de forma planejada para causar o menor impacto possível à natureza). Mas o cenário político não é hoje favorável a ações mais duras. Em 2012, o PT perdeu as prefeituras de Xapuri e Brasileia, berço das lutas de Chico Mendes, e tenta agora recompor o patrimônio eleitoral perdido.
- É inadmissível que o seringueiro que nasceu e se criou aqui não possa ser compensado pelo que fez sem agredir a natureza. O manejo madeireiro já existe desde os tempos de Chico Mendes. A diferença, agora, é que o debate foi ampliado para os meios acadêmicos. A madeira pode ser um componente importante da renda da comunidade. Só não pode ser o mais importante - defende Júlio Barbosa, amigo de Chico e ex-prefeito de Xapuri pelo PT.
Mas nem todos os antigos aliados de Chico Mendes estão de acordo com o protagonismo da madeira e da pecuária na região.
- Não há em nenhum lugar do mundo um exemplo de manejo sustentável da madeira que tenha dado certo. Não há como comprovar. Se Chico Mendes estivesse vivo, acho que ele inicialmente toparia fazer. Mas, passados dois, três anos, diria: "Peraí, agora chega" - critica o advogado Gomercindo Rodrigues, uma das últimas pessoas a ver Chico vivo.
Em Xapuri, os históricos "empates", quando Chico Mendes e outros seringueiros enfrentavam os jagunços para evitar a derrubada da mata, ficaram no passado. Agora, a briga mais renhida do município opõe antigos companheiros de lutas. No centro da disputa, com desdobramentos na Justiça, está o Sindicato dos Trabalhadores Rurais, base estratégica para a política cevada pelos créditos rurais.
Peça-chave na luta dos trabalhadores rurais nos anos 80, Raimundão preserva a floresta
Primo de Chico Mendes, seringueiro divide a terra com outras 30 pessoas
CHICO OTAVIO
Enviado especial
chico@oglobo.com.br
XAPURI (AC). Diariamente, por volta das seis horas da manhã, Raimundo Mendes de Barros, o Raimundão, de 68 anos, põe-se a sangrar as seringueiras, colocando as tigelinhas para recolher o látex que escorre. A incisão é perfeita, apesar de obrigá-lo a vergar o corpo de 1,83 metro e a usar uma das mãos para espantar mosquitos em rápidas abanadas. Quatro horas depois, ele já está de volta a uma das três trilhas de sua área de extração, a colocação Rio Branco, no seringal Floresta, fazendo todo o percurso novamente para despejar no latão o conteúdo das canecas.
A jornada de Raimundão, que o faz passar por 150 seringueiras até o fim da trilha, é mais do que um meio de sobrevivência. É uma atitude. Primo de Chico Mendes e peça-chave nas lutas dos trabalhadores rurais dos anos 1980, ele é um dos últimos românticos da floresta acriana. Sua colocação, ainda livre da pata do boi e da motosserra, é o sucesso prático da utopia que custou a vida ao seu parente: a ideia de que é possível sobreviver economicamente sem derrubar a floresta.
Seringueiro apaixonado pelas matas, Raimundão mantém praticamente intactos os 300 hectares de sua colocação, espaço que divide com 30 pessoas, entre parentes e agregados. Depois de cumprir quatro mandatos como vereador em Xapuri, 16 anos de carreira política iniciada no calor dos acontecimentos que sucederam a morte do primo, Raimundão resolveu se recolher ao seu microcosmo disposto a provar que sua pregação ambiental vai muito além do púlpito da Câmara Municipal da cidade.
Certa ocasião, Raimundão começava um sono leve quando se assustou com o rumor do galinheiro. Da janela, viu um gato do mato agarrar uma galinha e rodá-la, sem conseguir retirá-la da cerca de arame. O veterano disparou a espingarda, mas errou o tiro. O felino voltou, pouco tempo depois, mas Raimundão desperdiçou outro disparo. Humilde, disse que era ruim de mira, mas seus parentes garantem que o chefe do seringal não queria acertar o alvo.
Quando vai para o mato, Raimundão é seguido pelos cinco cachorros da família. Um deles, por acaso, de nome "Chico". Sua casa parece uma Arca de Noé, habitada por galinhas, patos, porcos do mato e até um veado fêmea, típico da região. Chega a ser engraçado assistir o velho seringueiro, de fala carregada, reclamar que a filha, professora rural, aderiu às maravilhas do notebook - de seus oito filhos, cinco ainda moram com ele no seringal Floresta, dentro da Reserva Extrativista Chico Mendes, a 20 quilômetros de Xapuri.
"Nossos filhos estão livres do analfabetismo"
Incansável na defesa da preservação, ele prefere o velho sistema do discurso ao vivo para propagar o que pensa. Improvisou, com toras de madeira, um pequeno anfiteatro, onde faz reuniões periódicas da comunidade e explica aos mais jovens as razões que o levaram, ao lado de Chico Mendes, a protagonizar os embates em Xapuri e arredores:
- Digo que a primeira vitória foi alcançada: conquistamos a terra. Embora não sejamos os proprietários, ninguém mais nos tira daqui. Não há mais a ameaça do latifúndio. Nossos filhos estão livres do analfabetismo e os ramais encurtaram de seis horas para meia hora a distância que nos separava da cidade.
Raimundão disse que, há três décadas, quando a luta ganhava força, o único apoio aos seringueiros vinha da Igreja católica local. As demais forças - ruralistas, políticos, Justiça e polícia - eram inimigas, garante. O veterano é um dos poucos, em Xapuri, a falar de Chico Mendes sem apelar para os clichês. Suas memórias são marcadas pelas saudades do primo, de quem sente falta até hoje.
Raimundo Mendes sabe que a luta continua. Seu desafio, agora, é provar que cortando as seringueiras, colhendo castanhas, produzindo óleo de copaíba e água de jatobá, além de domesticar os porcos do mato, o caboclo vive bem com a família. Uma mudança, porém, ele assimilou: está plantando as serigueiras em seu terreno para agilizar a produção. Sua preocupação não é com a idade avançada, mas com os filhos:
-Assim, eles não terão preguiça de percorrer as trilhas.
O Globo, 08/12/2013, País, p. 3-4
http://oglobo.globo.com/pais/na-terra-de-chico-mendes-borracha-perde-espaco-para-pecuaria-motosserras-11005552
http://oglobo.globo.com/pais/peca-chave-na-luta-dos-trabalhadores-rurais-nos-anos-80-raimundao-preserva-floresta-11005716
Populações Tradicionais
Unidades de Conservação relacionadas
- UC Chico Mendes
As notícias publicadas neste site são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.