Cerrado em chamas

CB, Cidades, p. 23-24 - 21/09/2005
Cerrado em chamas
No dia mais quente do ano, 5,1 mil hectares de três reservas ecológicas foram queimados

Da equipe do Correio

Anuvem acinzentada que encobriu o céu da capital federal ontem era o sinal da tragédia. O brasiliense sentiu no ar a combinação entre o dia mais quente e o maior incêndio florestal do ano. Mas o incômodo provocado pela alta temperatura - por volta das 15h, chegou a 33,4o - ficou pequeno diante da queimada que atingiu três reservas ecológicas. As labaredas começaram no Jardim Botânico de Brasília na segunda-feira, avançaram pela área da Reserva Ecológica do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e atingiram a Fazenda Água Limpa, da Universidade de Brasília, transformando parte do cerrado nativo em pó.
A estimativa no início da noite era de que 51,37km² (5,1 mil hectares) foram devastados, área equivalente ao Guará, onde vivem 115 mil pessoas. Em alguns trechos, as chamas atingiram dez metros de altura. O trabalho de 300 militares do Corpo de Bombeiros começou às 9h e terminou pouco antes da meia-noite quando, segundo o major Luiz Blumm, o incêndio foi completamente apagado. Na avaliação dos bombeiros, 75% do Jardim Botânico foi queimado. Na Reserva do IBGE, o fogo atingiu 75% do território. Na Fazenda Água Limpa, os bombeiros afirmam que um quarto da reserva foi destruída.
A expectativa de que a ajuda viesse do céu cresceu, por volta das 17h, com a chuva que caiu em Planaltina. Mas, segundo as previsões do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), a estação chuvosa só deve começar na segunda semana de outubro. Até lá, haverá pancadas em áreas isoladas. A batalha travada contra o fogo nos dois últimos dias deixou pesquisadores e funcionários das reservas apreensivos.
Uma das principais pesquisas sobre os efeitos do fogo no cerrado é desenvolvida na área do IBGE. Existem manchas verdes livres de incêndios, usadas como fonte de estudo pelo projeto. Mas justamente esse trabalho está entre as possíveis perdas provocadas pelo incêndio de ontem. "Seria irrecuperável. Estou perplexo com o que está acontecendo", lamentou o biólogo Mauro Ribeiro, gerente de Recursos Naturais da Reserva do IBGE.
O bioma conhecido pela resistência ao fogo também sentirá as conseqüências das queimadas. De acordo com o Corpo de Bombeiros, foram registrados 4,8 mil focos de incêndios florestais este ano, quase o dobro de 2004. "O cerrado empobrece em fauna e flora quando queima com uma freqüência muito alta. Muitas espécies não resistem aos incêndios", explica o engenheiro florestal César Espírito Santo. A capacidade de regeneração fica comprometida quando a freqüência supera os cincos anos entre um episódio e outro. A causa do fogo ainda não foi identificada.

Jardim Botânico devastado
O alívio durou pouco. Depois de queimar durante 14 horas na segunda-feira, o Jardim Botânico voltou a pegar fogo ontem às 11h. As labaredas não só destruíram a área de cerrado, como invadiram também a mata ciliar, difícil de ser recuperada. Até o fechamento desta edição, os bombeiros calculavam que 75% do Jardim Botânico estavam devastados. A definição sobre a reabertura do parque, prevista para sexta-feira, será tomada apenas hoje. Às 22h, uma leve garoa começou a cair e ajudou a apagar as chamas. A expectativa era de que o fogo fosse controlado de madrugada.
A diretora do Jardim Botânico de Brasília, Anajúlia Heringer Salles, lamentou a gravidade do incêndio. Como se soubesse o que estava por vir, ela avaliou a situação como crítica e lembrou que o parque não sofria um incêndio parecido há mais de sete anos. "O fogo atingiu áreas difíceis de serem recuperadas. E também não temos como proteger os animais. Eles têm que fugir por conta própria", observou.
Como a maior preocupação de Anajúlia era preservar o setor de visitação pública, o tenente Moisés Alves Barcelos, do 4o Batalhão de Incêndio Florestal, optou pela prática conhecida por "fogo contra fogo". Os brigadistas do Jardim Botânico queimaram uma faixa da vegetação que separava a área dos visitantes e o incêndio para evitar o avanço das chamas. Por volta de meio-dia, 200 homens se revezavam entre os incêndios nas três reservas ecológicas da região. Quatro horas mais tarde, diante da previsão de 18 horas de trabalho para apagar as chamas, outros 40 homens foram enviados para o Jardim Botânico.
O coronel Epaminondas Figueiredo de Matos, do 4o Batalhão de Incêndio Florestal, explicou que o fogo não queimou apenas a vegetação e as árvores, mas também o humus, camada de material orgânico logo abaixo da superfície. "Por isso, o incêndio que aparentemente estava extinto reapareceu", afirmou. O helicóptero do Corpo de Bombeiros só começou a ser usado por volta das 16h. Depois de trabalhar ontem o dia todo, ele teve um problema no rotor traseiro e precisou passar por manutenção.

Fogo prejudica pesquisadores
Incêndio vai comprometer a coleta de dados nos estudos em andamento na Fazenda Água Limpa da UnB e na Reserva Ecológica do IBGE. Fumaça e fuligem incomodaram moradores e comerciantes da região
Isabel Fleck e Mário Coelho
Da equipe do Correio
As labaredas também voltaram com intensidade na manhã de terça-feira na Fazenda Água Limpa, da Universidade da Brasília. Às 9h15, apareceu o primeiro foco de incêndio. Duas horas depois, foi a vez da Reserva Ecológica do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) ter sua vegetação consumida pelas chamas. De acordo com o Corpo de Bombeiros, o fogo atingiu 25% dos 4,5 mil da Fazenda Água Limpa e 75% dos 1.350 hectares do IBGE. As duas áreas ficam na Área de Proteção Ambiental (APA) Gama Cabeça de Veado e o fogo foi controlado no começo da noite.
Na reserva do IBGE, o fogo começou em uma área nas proximidades do Jardim Botânico de Brasília, onde estão espécies de vegetação do cerrado e de campo sujo, que facilitam a propagação do fogo. Em seguida, o incêndio atingiu a mata de galeria, que está ao lado da rede de drenagem. As chamas chegaram a dez metros de altura. Funcionários e bombeiros se alternavam na tarefa de acabar com o incêndio. "Apesar do fogo afetar quase toda a reserva, a gente ainda não tem dimensão dos prejuízos", afirma a chefe da Divisão de Estudos Ambientais do IBGE, Betânia Góis.
Técnicos e pesquisadores do IBGE vão precisar de um esforço extra na tentativa de recuperar os dados das pesquisas perdidos com o incêndio. Entre projetos de curta, média e longa duração, graduação, mestrado e doutorado, são 46 temas relacionados à fauna e à flora do Planalto Central. De acordo com a chefe da Divisão de Estudos Ambientais, quase todo o material de pesquisa que estava em campo foi queimado. "Os pesquisadores conseguiram salvar pouca coisa", completa.
Os mestrandos da UnB Fabian Schulz, 37 anos, e Mariana Saracena, 30 anos, estão entre os que tiveram a pesquisa prejudicada pelo fogo. Eles usavam a reserva há sete anos para pesquisar o efeito da fertilização no ecossistema do cerrado. O fogo destruiu os dendrômetros de banda, que medem o crescimento das árvores, avaliados em US$ 8 mil (R$ 18,4 mil). "Foram anos de pesquisa perdidos", lamenta Mariana.
Fuligem
Na Fazenda Água Limpa, o incêndio começou no Setor de Mansões Park Way, em uma área próxima ao Aeroporto Internacional de Brasília. Junto com outros 20 funcionários, Marconi Barbosa, 30 anos, tentava apagar o fogo que queimava a vegetação. Em esquema de revezamento, alguns saíam para almoçar enquanto o restante trabalhava. Os equipamentos usados eram precários. Nas mãos, abafadores e enxadas. Apenas uma bomba de água estava disponível, assim como um pequeno carro-pipa com cinco mil litros de água. "Os bombeiros vieram aqui, controlaram o fogo e deixaram o resto para a gente", diz Marconi. "Trabalho aqui há quatro anos e nunca vi uma coisa dessa. É muito chão queimando", completa.
A fumaça e a fuligem incomodaram quem vive ou trabalha perto das reservas ecológicas. A empresária Adriana da Costa, dona de uma loja de pedras decorativas, perdeu as contas de quantas vezes teve de limpar a loja e os produtos por causa da fuligem. "Hoje (ontem) o cheiro de fumaça estava bem mais forte e teve horas em que o céu estava bem fechado", diz Adriana. O comerciante José Ferreira dos Santos, 33, teve que deixar o ventilador ligado para dissipar a fumaça. Para o filho dele, Túlio, 11 anos, as conseqüências foram ainda maiores, já que as aulas da Escola Classe Jardim Botânico acabaram suspensas ontem.

Memória
Incêndio grave em 98
Em setembro de 1998, ocorreu o maior incêndio florestal da história do Distrito Federal. O Parque Nacional de Brasília teve 86,3km² destruídos, durante três dias de queimadas. Um terço do parque foi atingido. Dias depois, os focos incandescentes que resistiram à operação do Corpo de Bombeiros para salvar o parque fizeram o incêndio retornar. Foram seis dias de combate até o fim da queimada.
Em 2005, o índice de queimadas, com 4.817 focos, superou em quase duas vezes os casos do ano passado. Antes do incêndio que atingiu ontem três reservas ecológicas, o caso mais grave do ano havia sido na Fazenda Água Limpa, em 31 de agosto, quando 1,2 mil hectares foram destruídos.
Em julho, o Jardim Botânico de Brasília sentiu o primeiro grande prejuízo da seca neste inverno, quando 500 hectares viraram brasas em seis horas. Espécies raras como o peixe pirá-brasília, que só existe ali, ficaram ameaçadas. Desde 2000, o Jardim Botânico tem sido atingido por queimadas criminosas. Uma torre de monitoramento para focos de incêndio foi instalada na área há seis meses.
Em agosto do ano passado, metade da Chapada Imperial, reserva ambiental que fica em Brazlândia, foi devastada pelo fogo. Mesmo com a operação dos bombeiros, equipados com abafadores e aparelhos pinga-fogos, milhares de espécies que viviam nos 4,8 mil hectares da reserva morreram. Foi o maior incêndio de 2004.

Previsão de tempo ainda mais quente hoje
Isabel Fleck
Da equipe do Correio
Carlos Vieira/CB
Os termômetros do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) registraram ontem à tarde a temperatura mais quente de 2005. Por volta das 15h, os medidores atingiram 33,4o. E a previsão para hoje é de ainda mais calor. A expectativa é de que se chegue aos 34o, podendo até mesmo bater o recorde de Brasília, que foi de 34,5o, em outubro de 1963. A umidade do ar continuou baixa, por volta dos 24%, nas horas mais quentes.
Os meteorologistas, no entanto, não descartam pancadas de chuvas em pontos isolados até sexta-feira. Ontem, choveu em Planaltina no meio da tarde. "Mas só serão chuvas ocasionais. Temos a perspectiva de que a estação chuvosa mesmo vai demorar mais este ano. Deve começar na segunda semana de outubro", explica o meteorologista Luiz Cavalcanti, do Inmet. Apesar de ser uma época tipicamente quente e seca, Cavalcanti afirma que as temperaturas registradas nos últimos dias estão acima da média de setembro. "Estamos em um inverno mais quente. O normal para este mês são temperaturas em torno dos 28o", assegura.
Na última semana do inverno, profissionais que trabalham no sol ou em atividades que exigem uma exposição excessiva ao calor sofreram ainda mais por causa das altas temperaturas. Para o churrasqueiro Alberto Oliveira dos Santos, 43, que trabalha há 15 anos no mesmo restaurante, a labuta diária se tornou um sacrifício. O horário que trabalha em frente à churrasqueira - entre 11h30 e 15h - é quando são registradas as maiores temperaturas. O jeito é usar só o jaleco do uniforme, sem blusa por baixo, e imaginar que está em um lugar bem mais agradável. "Se tivesse à beira de uma piscina era bem melhor", brinca.
Noites quentes
Mas não é só durante o dia que o calor incomoda. À noite, quando é esperado que a temperatura caia, o brasiliense tem perdido o sono por causa do mormaço. De acordo com o Inmet, a situação pode ser explicada pelo efeito estufa, agravado pela grande quantidade de nuvens nas últimas semanas. "À noite, o céu está nublado e as nuvens impedem que o calor refletido pelo solo seja dissipado", explica Luiz Cavalcanti.
Na casa do estudante de Biologia Felipe Bianchi, 23, um ventilador em cada quarto já garante um clima mais agradável para dormir. Mas não é o suficiente. "De vez em quando, colocamos bacia com água e toalha molhada para amenizar o calor", explica Felipe, que só consegue deitar se a janela estiver aberta. O mal-estar causado pelo tempo quente e seco é tanto que o estudante resolveu colocar o umidificador de ar na frente do ventilador, para ajudar a espalhar o vapor d'água.
A engenhoca montada por Felipe também foi usada para driblar o calor na casa da bancária aposentada Ana de Fátima Miranda, 50. "No começo da tarde, tento ficar em casa, em frente à televisão, com o ventilador e umidificador ligados", conta. Nas horas de desespero, o jeito é apelar para uma ducha fria. "No domingo, não agüentei e entrei debaixo do chuveiro. Me vesti com o corpo molhado mesmo, mas não adiantou. Em dez minutos, já estava seca de novo", lembra.

CB, 21/09/2005, Cidades, p. 23-24
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