OESP, Caderno 2, p. D6 - 25/07/2008
Equilíbrio entre educação, lazer e consciência ecológica
Dentro do conceito que visa a unir "arte e vida", grupo de crianças participa de atividades em reserva próxima a uma represa
Lauro Lisboa Garcia
Enquanto Fábio Delduque é o curador artístico do Festival de Arte Serrinha, seu irmão Marcelo cuida da parte mais voltada à natureza. É da relação de ambos que brota o conceito do festival. Carlos Oliveira, o Carlão, outro dos idealizadores, é o principal responsável pelos bons sabores que se prova por ali - incluindo as pizzas do Galpão Busca Vida e a bebida de mesmo nome, uma mistura de cachaça, mel e limão.
Não é por acaso que forças criativas como as de Bené Fonteles, cujo trabalho é totalmente orgânico, são suas aliadas. Fonteles até não se considera artista, porque não quer nem a prisão da arte. Mas cada pedra, cada pedaço de madeira de sua 'arte biológica', digamos, tem uma história humana relacionada. E é inspirador ouvi-lo contar enquanto vira as páginas de seu recém-lançado livro Cozinheiro do Tempo, um significativo panorama de suas atividades com artes visuais, poesia e música. Sim, porque, ele que também é compositor, diz que o que pinta e se esculpe também tem ritmo, harmonia, melodia. 'Nunca conheci um artista plástico que não gostasse de música.'
O público que freqüenta esse encontro de correntes artísticas compartilha essa idéia. Segundo Marcelo Delduque, o festival ainda é um tanto restrito ao circuito universitário, ao grupo de amigos dos amigos. Mas ao que parece é o ideal, embora Marcelo considere bom o que sai na mídia sobre o festival. É relativamente pequeno por fora, mas resulta grande por dentro, em conteúdo e qualidade de vida. 'Quem lê a respeito do festival ou vê no site não entende exatamente o que é', diz Marcelo. 'Aqui, a gente procura mostrar o lado que não está na universidade, que é a união de arte e vida. Arte não é uma coisa compartimentada, que você pratica duas horas no período da tarde. Aqui acontece o tempo todo', diz Fábio.
A Fazenda Serrinha é uma RPPN (Reserva Particular do Patrimônio Natural). 'Ou seja, nossas áreas florestais têm status de unidade de conservação reconhecida pelo Ibama. E isso é em caráter perpétuo, por decisão nossa', diz Marcelo. Como parte das atividades do festival, há um trabalho de educação de crianças e adolescentes, mesclando arte, lazer e consciência ecológica. No sábado passado, com vista para a bela represa que ganha a região, um grupo de crianças do bairro Água Comprida participou de forma lúdica de um jogo de associação entre imagens diversas da Terra - desde as belezas da fauna, das águas e da flora até os fenômenos destrutivos, como tempestades e lixo urbano. Essa foi a primeira vez que os educadores do ISA (Instituto Sócioambiental) participaram das atividades da Serrinha.
Fábio acha bom, de certa maneira, que até agora o evento se mantenha só com apoio da Secretaria de Estado da Cultura - embora patrocínios sejam bem-vindos para, por exemplo, baratear os custos das oficinas, que giram em torno de R$ 200, R$ 300 cada uma. 'Por mais contraditório que possa parecer, a gente encontrou compreensão muito maior desse projeto por parte do poder público do que da iniciativa privada. Pelo menos o pessoal da Secretaria é gente de cultura. É diferente de tratar com gente de marketing. Conseguimos criar um conceito que se estabeleceu de modo que, hoje, um patrocinador vai ter de se adequar à idéia do festival e não o contrário', diz.
Algo parecido Bené Fonteles disse sobre a relação de arte e natureza. Para ele, a arte do terceiro milênio vai se perguntar o que a matéria quer ser 'e não impor uma forma a ela'.
Refazenda cultural na Serrinha
Um passeio pelo parque criativo dos irmãos Delduque, onde tudo acontece em clima de liberdade ideal
Lauro Lisboa Garcia, Bragança Paulista
E Bené Fonteles disse algo como: 'Cuidado, você vai ser absorvido pelo festival.' A 'advertência' serve para qualquer visitante, artista, aluno, palestrante ou interessado culturalmente que acesse a Fazenda Serrinha, dos irmãos Fábio e Marcelo Delduque, perto de Bragança Paulista. Artista plástico e fotógrafo, eles são os mentores do festival, que reúne diversas modalidades artísticas em harmonia com a mãe natureza até domingo. O fim de semana tem shows do grupo Cérebro Eletrônico e da percussionista Raquel Coutinho (amanhã, no Galpão Busca Vida), oficina de teatro com Guilherme Leme (performance e happening), de ioga com Jussara Rodrigues e Regiane Rocha, de paisagismo com Fernando Limberger e de música com Raquel Coutinho e Fábio Carvalho (tambor mineiro e congo). Mas não é só isso. Fonteles continua com seu trabalho, iniciado na segunda-feira, e Leme deve interagir com as outras oficinas. Ou seja, as condições são bastante propícias para um happening de encerramento.
Quer dizer, é nesse dia que a sétima edição do festival termina, mas diversos de seus frutos - como o vistoso labirinto em espiral de Fonteles, que também serve de cenário para performances e encenações teatrais - permanecem por ali, integrando-se à paisagem. E tem a colheita afetiva, abstrata, que se leva para casa na memória. Como disse o cantor e compositor Moska, que se apresentou no sábado, 'a diferença é que aqui existe uma vivência'. Para ele, há algo maior que torna o show apenas um detalhe. 'Aqui há uma comunhão de vários pontos de vistas diferentes. Você vai sendo absorvido e absorvendo ao mesmo tempo, pelas conversas que rolam nos bares, nas passagens pelos workshops. Sempre volto modificado. E isso acontece com outros artistas que passam por aqui.'
Considerado pelos Delduques como velho parceiro do festival, além de amigo pessoal, Moska vislumbra algo maior no ideal de Fábio. 'Imagina isso daqui a 50 anos transformado num centro cultural, lotado de obras de arte.' Para ele, há algo na paisagem e na 'paisagem humana', que se completam. 'Tem uma coisa hippie, no melhor sentido da palavra, porque tudo é bem natural. Isso é fundamental para que a coisa se torne vivência. Você sai daqui com um monte de amigos novos.'
A poeta Alice Ruiz, estreante no evento, faz coro. 'Devia haver mais festivais assim em outros lugares', disse. Ela conta que em sua oficina de haicai alguns alunos se alegraram por se descobrir poetas. 'Isso normalmente acontece, mas o diferencial é que este não é um festival como outros de literatura ou de artes em geral, que são organizados por entidades mais burocráticas, mais rigorosas. Aqui, além de o lugar favorecer - porque numa fazenda você ensinar haicai, que é sobre a natureza, é perfeito -, a informalidade, o contato direto com as pessoas, trocando experiências, tudo isso me pareceu ideal para o que se refere como produção criativa, porque a criatividade precisa de liberdade.'
É comum alunos que fizeram aulas na primeira semana voltarem na seguinte para acompanhar as atividades de outros. Afinal, as manifestações artísticas não se limitam aos espaços dos ateliês. André Stutman terminou a oficina de Dudi Maia Rosa e foi ficando, horas a fio a pintar e repintar a parede do galpão-ateliê. Marcela Scavoni ajudou a construir o labirinto com Bené Fonteles em 2004 e reforçou seus vínculos. 'Vim como aluna e, como todos, fiquei encantada. Desde então, entrei para trabalhar na produção. São anos incríveis.'
Marcelo Delduque quer saber se para quem vê de fora o festival é mais atraente pelo aspecto educacional ou pela diversão. 'Isso é o incrível daqui, porque você tem uma mistura dos dois, só que não é um entretenimento qualquer, mas com arte. Em qualquer canto você pode ter discussões, estar sempre fazendo trocas. Isso é que é o rico daqui. Não é segmentado como tudo é hoje', diz Marcela.
O conceito de liberdade na realização das oficinas se estende por todos os cantos. As atrações podem brotar a qualquer momento, seja uma festa de preparação para a montagem de vídeos da oficina de Lucas Bambozzi e Éder Santos ou a exibição dos vídeos em si com telas instaladas nos próprios locais onde foram realizados: no muro, no curral, na escadaria.
É só dar uns passos acima para se deparar com Gustavo Godoy aprimorando sua instalação de cadeiras fixadas em árvores secas. Uma caminhada mais distante leva à casa da árvore idealizada por Floriana Breyer e instalada com apoio do engenheiro Peetsa. Só a montagem virou um show para os moleques de todas as idades.
Dora Longo Bahia, além de realizar a oficina O Museu do Vazio - Pintura Como Ilusão, Alucinação ou Sonho, coordenou o trabalho de ilustração dos poemas que os alunos de Alice Ruiz criaram na oficina de haicai. 'A gente falou muito das formas alternativas de fazer pintura, desde o pós-guerra, até Andy Warhol, serigrafia, punk, Basquiat', disse. Os fanzines punks serviram de modelo para os caderninhos de haicai.
O resultado foi um sucesso, só superado pelo 1o Festival do Minuto Chato, que Dora inventou ali na hora e ganhou adesão imediata. 'Ser chato em duas horas é fácil, quero ver em um minuto', desafiou Dora, que levou como obras de referência filmes de Warhol, Derek Jarman e afins. 'Todo artista que se preze tem um vídeo chato', brincou.
A exibição dos vídeos, em telão montado no jardim da casa de Fábio, foi o acontecimento do domingo à noite. Alguns deles, provando a teoria de Dora, nem foram chatos, mas criativos e bem divertidos. Venceu o incômodo Cof, Cof, que alternava imagens de fumantes em ação e a figura de um rato e uma barata mortas estampadas no verso de um box de cigarros. Como trilha sonora constante, tosses aflitivas das chaminés humanas.
Ainda bem que nos ambientes onde há música, toca-se Jorge Ben das antigas, Cesaria Evora, Itamar Assumpção, Tom Zé. Na mata em volta é um silêncio purificador. Bem que Bené Fonteles avisou.
OESP, 25/07/2008, Caderno 2, p. D6
UC:RPPN
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