Lucro com a floresta em pé

O Globo, Razão Social, p. 12-14 - 04/08/2009
Lucro com a floresta em pé
Fábrica de camisinhas no Acre multiplica renda de seringueiros

Camila Nobrega*
Enviada especial a Xapuri, Acre
camila.alves@oglobo.com.br

Com o céu ainda cheio de estrelas, Nilson Mendes se levanta, toma um gole de café e, antes das três da madrugada, começa seu dia de trabalho, em meio à escuridão da floresta amazônica. Como os outros 85 seringueiros que trabalham no Seringal Cachoeira, no município de Xapuri, no Acre, ele pega sua "cabrita" (instrumento de extração) e passa pelas seringueiras, percorrendo 14 quilômetros diários dentro da floresta, sempre respeitando os dois dias de pausa necessários, para não exigir demais das árvores. Por volta das 9h, ele está de volta para recolher o que lhe rendeu no dia, carregando nas costas uma média de 15 litros de látex e no olhar o orgulho de ter retomado um ofício centenário que está promovendo o desenvolvimento econômico de Xapuri com base na floresta em pé.

Desde o início de 2008, a produção de látex ganhou novo impulso na região, trazendo uma valorização do produto pela qual eles lutavam há mais de 30 anos.

Uma fábrica de preservativos estatal instalada em Xapuri, a Natex, reativou a produção de látex na região, elevando em mais de 300% os preços pagos pelo quilo do produto e fazendo com que os seringueiros tirassem do armário as tradicionais botas de borracha. Durante alguns anos, quase todos substituíram essa rotina pela exploração de castanhas ou corte de madeira, fonte que, apesar de mais rentável, tem como base o desmatamento, que é marca da região. Prova disso é que, nos 188 km da estrada que liga a capital Rio Branco até Xapuri, só se vê floresta ao longe. As margens da estrada são a imagem de um grande pedaço da floresta que foi transformado em capim, principalmente para dar lugar à pecuária.

Nilson foi um dos seringueiros que havia parado de extrair látex, porque o produto colaborava muito pouco com o sustento da família. Criado com 18 irmãos, quase todos seringueiros, ele fez o primeiro corte em uma seringueira com apenas 6 anos, orientado pelo pai, e não estava satisfeito de ter que abandonar o ofício para lidar com motosserras e exploração da castanha. Aos 46 anos, ele conhece cada metro da floresta, guiado por árvores como castanheiras e samaúmas, das quais ele é capaz de dizer a idade só de olhar para o tamanho e a textura. Hoje, Nilson complementa a renda guiando turistas e pesquisadores na Amazônia acreana. Mesmo assim, não esconde qual a função preferida: - Como seringueiro, você anda quilômetros, mas sente uma saúde imensa para si e para a floresta. É muito boa essa possibilidade de aumentar a renda com a extração do látex, que não agride a natureza.

Eu já sou a terceira geração da minha família que explora as mesmas árvores, sempre com cuidado.

Quase todos os seringueiros voltaram a trabalhar.

Paramos porque estávamos ganhando cerca de R$ 50 por mês vendendo o látex para fazer borracha, mas hoje ganhamos até R$ 400 por causa da fábrica de preservativos - disse ele, que, com a renda atual, consegue manter sua mulher e filha mais velha estudando em faculdades de Rio Branco.

Nilson é primo de primeiro grau de Francisco Alves Mendes Filho, o Chico Mendes, que iniciou a luta por melhores condições de trabalho nos seringais brasileiros na década de 1970, quando começou a participar de movimentos para impedir o desmatamento, sendo acusado por fazendeiros e políticos de prejudicar o progresso no Acre. Já nessa época, Chico Mendes defendia a criação de reservas extrativistas para os seringueiros e de incentivos que agregassem valor ao látex e melhorassem a qualidade de vida da população.

O primeiro objetivo só foi atingido pouco mais de um ano após seu assassinato, com a criação da primeira reserva extrativista do país, em 1990, e o primeiro passo para a valorização do trabalho dos seringueiros só está ocorrendo agora.

Hoje, a fábrica de preservativos Natex já conta com 430 famílias de seringueiros cadastradas e quer atingir a meta de 700. Como fruto da parceria entre o governo federal e o governo do Acre e dos R$ 30 milhões investidos, a inauguração da fábrica de preservativos ocorreu em setembro de 2007 e, no início do ano seguinte, foi iniciada a distribuição de preservativos, que atingiu a casa dos 100 milhões de janeiro a dezembro de 2008. Essa quantia responde por 20% do total comprado pelo governo para distribuição gratuita, o que mostra que há espaço para aumentar a produção e empregar mais gente.

Muitas mulheres que antes praticamente não tinham opções de trabalho no município, hoje estão empregadas na fábrica de preservativos, onde são maioria. Com 150 funcionários, a Natex é o segundo maior empregador de Xapuri, perdendo apenas para o próprio município, como explica Kelma Castro, coordenadora operacional da fábrica:
- Muitas dessas mulheres não tinham renda própria e agora têm orgulho de ajudar em casa.

O processo de implantação foi longo. Em 2003, o presidente Lula assinou um decreto para viabilizar a Natex, com o objetivo de agregar valor ao látex e empregar apenas pessoas da região em todo o processo produtivo, além de reduzir a importação de preservativos pelo Ministério da Saúde. Inicialmente, foram necessárias pesquisas para viabilizar a utilização do látex natural, já que a produção mundial é focada nas florestas de cultivo, cujo plantio é programado. Além disso, o cadastramento e as capacitações dos seringueiros são feitos desde 2003, para prepará-los para exigências de qualidade do produto. Cada um deles recebe um kit de extração, que garante o armazenamento adequado, e aprende noções de higiene necessárias para o processo.

No entanto, uma das metas ainda não alcançadas é usar a nova produção local como ferramenta de educação sexual. Segundo Kelma, boa parte da população nunca viu uma camisinha, e não faz controle algum de natalidade, informação que não é difícil constatar, pelo número de mulheres grávidas na região. Por lá, ainda é muito comum ver famílias imensas e mulheres jovens com vários filhos. A falta de proteção dificulta ainda mais a inserção delas no mercado de trabalho e mostra como estão expostas a doenças sexualmente transmissíveis. Para as que trabalham na fábrica, o conhecimento vem por meio do dia-a-dia, mas a população de cerca de 14 mil habitantes é carente de educação básica.
Mesmo assim, seis anos após o início do projeto, a instalação da fábrica já mudou a rotina do município. Apesar de os seringueiros ainda complementarem a renda com o corte de madeira, por exemplo, a prioridade voltou a ser o látex. Com isso, se mantém a relação estreita dos moradores com a floresta, já que a atividade se baseia em um conhecimento minucioso da flora e fauna locais. Na palavra dos seringueiros, trata-se de uma questão de respeito. Eles precisam das árvores de pé, hoje mais do que nunca. Há cerca de dois anos, o quilo de borracha seca, equivalente a dois litros de látex, era vendido a uma média de R$ 0,70. Hoje, a fábrica paga R$ 3,40 e, com o subsídio do governo, o valor chega a R$ 4,80. Com isso, em 2008 foram coletados mais de 12 mil litros de látex, contra apenas cerca de três mil em 2007. A qualidade de vida das famílias nos seringais melhorou bastante e hoje, para minimizar as imensas caminhadas diárias dentro da floresta, os seringueiros já contam com uma ajuda motorizada, já que para muitos as motos viraram sonho de consumo realizado.

Nos últimos meses, os seringueiros cadastrados na Natex e suas famílias têm sido levados para conhecer a fábrica e ver de perto o resultado final de seu trabalho. Com isso, eles têm a oportunidade de observar a confecção dos preservativos, desde a chegada do látex à fábrica até o fim da produção, já dentro de embalagens que indicam "látex natural da Amazônia". Para eles, o sentimento principal é o de inclusão, como explica Nilson Mendes:
- Primeiro, as pessoas se deram conta de que tinham que cuidar da floresta, mas se esqueceram da gente. Hoje, veem o homem com a floresta. Consciência não se compra e nós somos instrumento de formação dessa consciência nas pessoas e de proteção da floresta.

Mas, apesar das mudanças que estão ocorrendo, ainda há um longo percurso a fazer, como afirma Elenira Mendes, filha de Chico Mendes e atual secretária de Meio Ambiente de Xapuri. Com muita dificuldade de se referir a ele como "meu pai", Elenira explica que gostaria que ele pudesse ver a melhoria na qualidade de vida dos seringueiros, uma de suas principais bandeiras na década de 1980. Mas, segundo ela, ainda é necessário ampliar os conceitos de sustentabilidade para os moradores da floresta, ressaltando que é possível extrair sem desmatar:
- Os seringueiros estão vivendo de forma mais digna. Muitas famílias que haviam parado de extrair o látex hoje retomaram a atividade. Temos que incentivar esse tipo de exploração da floresta, que não desmata, preserva. Minha preocupação é o manejo florestal, pois é necessária muita fiscalização.
Os moradores precisam saber cuidar da terra.
Qualquer um pode defender a floresta. Meu pai era um seringueiro, não um super-herói.
*A repórter viajou a convite do Ministério do Turismo e da Braztoa


Xapuri aposta no turismo
Pousada Ecológica gera emprego para comunidades dos seringais
Camila Nobrega
camila.alves@oglobo.com.br
Inaugurada há quase dois anos dentro da floresta amazônica, em Xapuri, a Pousada Ecológica Seringal da Cachoeira abriu para a população local outro campo de trabalho que se sustenta na preservação da floresta.

Fruto de um investimento inicial de R$ 400 mil, por meio de uma parceria entre o Ministério do Turismo e o governo do Acre, a pousada é fonte de renda para mais de 30 moradores do local, que dividem sua administração com o poder público.
Na época da inauguração, os salários dos funcionários e as verbas para manutenção ainda eram repassadas pelo governo, mas a pousada está se tornando autossustentável, devido ao dinheiro arrecadado com diárias - de R$ 50 a R$ 100. Com três chalés e dois belichários, a pousada recebe cerca de cem visitantes por mês, a maioria pesquisadores do mundo todo, interessados na floresta e na história de Xapuri. E, segundo Ediza Pinheiro de Melo, de divisão da Secretaria de Turismo do Acre, a pousada se baseia em práticas sustentáveis: - Ainda não temos coleta seletiva de lixo aqui, então os hóspedes levam seu próprio lixo para coletas da cidade. E a madeira da construção é toda certificada.

Inicialmente, os moradores foram capacitados para atuar em todas as áreas da pousada.

Hoje, o funcionamento está caminhando em direção à mesma lógica das reservas extrativistas, que não delimitam áreas individuais, mas propriedades coletivas, como defendia Chico Mendes. Os moradores cadastrados fazem rodízio na pousada para que todos possam trabalhar lá e participar da gestão do local.

Mônica Souza é uma das funcionárias da pousada e ganha cerca de R$ 600 mensais, porque trabalha todos os dias no local. Grávida de sete meses e muito tímida, ela só abriu um sorriso ao dizer que está fazendo o enxoval com seu próprio dinheiro: - Todos os meses compro algo para o bebê e para minha casa. Todo mundo que trabalha aqui complementa a renda da família.

Ela conta que o maior aprendizado sobre sua importância na preservação da floresta veio do dia-a-dia da pousada e do contato com os hóspedes, muitos deles ambientalistas.


Valorização da cultura acreana

Camila Nobrega
camila.alves@oglobo.com.br

Nascidos no último estado incorporado ao território brasileiro, os acreanos vivem um momento de valorização da própria identidade, que se reflete nos produtos regionais.

Um exemplo disso são as mudanças ocorridas no artesanato, cada vez mais inspirado na cultura local. Boa parte da mudança se deve ao crescimento socioeconômico da cidade, mas uma capacitação realizada pelo Sebrae em parceria com a Secretaria de Turismo de Rio Branco foi fundamental para que artesãos pudessem traduzir o orgulho pelo estado em produtos rentáveis.

Em 2005, eles começaram a fazer cursos de empreendedorismo e qualificação. Substituíram pulseiras e ímãs de geladeira, sem conexão com a cultura local, por miniaturas de seringueiros e produtos com a marca "Acre", além de peças feitas de madeira certificada.

Com isso, a renda mensal dos 148 artesãos da cooperativa Casa do Artesão, que não passava de R$ 200, hoje chega a R$ 1.500.

Além disso, eles aprenderam a importância da palavra sustentabilidade. Segundo Carlos Taboca, um dos artesãos, uma etiqueta de "ecologicamente correto" agrega muito valor ao produto. Uma pulseira que antes custava R$ 2 hoje é vendida por até R$ 20 em outros estados: - Não sabíamos do interesse das pessoas pela cultura acreana e pela preservação da floresta. Nós mesmos estamos aprendendo mais sobre nossa história. E vemos o valor que as pessoas dão a produtos sustentáveis, de matérias-primas da Amazônia. Hoje, vendemos a ideia e a cultura junto com o produto.

Após fazer a capacitação e estudar sobre a história do Acre, Carlos criou um produto a partir do ouriço da castanha, que cai da castanheira sem interferência humana.

Ele modelou o ouriço e inventou uma vela tipicamente acreana, mas não imaginava que o produto, feito com matéria-prima tão comum na região, faria tanto sucesso. Nas últimas feiras de que participou em outros estados, o produto acabou no primeiro dia.

O Globo, 04/08/2009, Razão Social, p. 12-14
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