Destruicao ronda Parque da Serra da Capivara, patrimonio da humanidade

OESP, Vida, p.A26 - 13/03/2005
Destruição ronda Parque da Serra da Capivara, patrimônio da humanidade
Moradores da região desmatam áreas adjacentes, depredam sítios arqueológicos e até caçam nos limites da unidade de conservação
Evanildo da Silveira
Enviado especial
Criado em 1979 e considerado patrimônio da humanidade pela Unesco desde 1991, o Parque Nacional da Serra da Capivara, em São Raimundo Nonato, no Piauí, está com sua riqueza cultural e ambiental ameaçadas. Caçadores invadem uma das últimas reservas de caatinga virgem do País, atrás de animais como tatus, veados e caititus (uma espécie de porco-do-mato). Moradores da região desmatam áreas adjacentes, fazem queimadas e ocupam e depredam sítios arqueológicos, com pinturas rupestres milenares ainda não estudadas.
O plano de manejo do parque, elaborado em 1988, prevê uma zona de amortecimento de 10 quilômetros de largura em torno dele. Apesar de essa área estar fora do limites do parque, ela também tem de ser preservada. É justamente ali, no entanto, que um imenso patrimônio cultural, composto por vestígios de assentamentos humanos e pinturas rupestres com milhares de anos está sendo destruído.
ESTRAGOS
Um passeio pelos boqueirões, espécies de cânions, ladeados por enormes paredões de rocha, revela os estragos que a mão do homem está cometendo. Em muitos deles, a antiga floresta, com árvores de até 30 metros, que ocupava o fundo desses cânions foi derrubada e queimada. Em seu lugar brota uma capoeira baixa, quase impenetrável, que não serve mais de abrigo para animais como a onça, os veados e tamanduás, que estão desaparecendo da região.
Em um desses cânions, chamado Boqueirão Grande, a mata deu lugar para lavouras de feijão, melancia, mandioca ou milho. Como o solo é pobre, seus donos por certo não devem esperar grandes colheitas. As plantas são raquíticas, esquálidas e algumas só a muito custo se mantêm em pé. "É um crime o que estão fazendo aqui", indigna-se a arqueóloga Niède Guidon, presidente da Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), que administra o parque em parceria com o Ibama. "Se ainda fosse tirar essas pessoas da miséria, vá lá. Mas derrubam a mata e acabam com animais por nada."
Difícil é ver os donos das lavouras no local, principalmente durante a semana. "Muitos deles são pequenos comerciantes na cidade e só vêm aqui nos fins de semana", explica Niède. As marcas de sua presença na área são bem visíveis, no entanto. Elas podem ser vistas nas tocas, espécies de grutas nos paredões rochosos, muitas delas sítios arqueológicos, com pinturas rupestres.
Nessas tocas, os donos das pequenas lavouras fazem seus acampamentos. Improvisam depósitos para as colheitas com os troncos das árvores derrubadas. Constroem fogões com pedras, arrancadas dos paredões, algumas delas com pinturas milenares. A fumaça dos fogões cobre de fuligem o teto das grutas, encobrindo a arte rupestre. Como se não bastasse, no que deve ser uma provocação a Niède, alguns dos depredadores ambientais resolveram fazer seus desenhos nas rochas, usando carvão para imitar as pinturas antigas. Outros escrevem nomes de times de futebol.
Mas nada chama mais a atenção do que uma geladeira encontrada em uma das tocas. Com a porta trancada com um cadeado, não deve servir para gelar nada, perdida numa gruta sem nenhum tipo de energia. "Provavelmente, é usada para guardar armas e munições", diz Niède, com o olhar desanimado. "Vendo tudo isso, às vezes dá vontade de largar tudo, de desistir de cuidar do parque e dessa região."
Os problemas não se limitam à zona de amortecimento. O próprio parque tem sofrido a ação de invasores, principalmente de caçadores. Os 16 guardas do Ibama (8 móveis e 8 em guaritas) e mais 10 da Fumdham são insuficientes para proteger os 130 mil hectares e os mais de 800 sítios arqueológicos. Por isso, as caçadas são cada vez mais comuns. "Teríamos de ter no mínimo 150 guardas", diz o chefe do parque do Ibama, Jorge Antônio Ribeiro França. "Com os que temos é impossível fiscalizar com eficiência toda a área."
Segundo França, outro problema que o Ibama enfrenta são 86 famílias que ainda permanecem morando dentro do parque. Com a criação do parque, elas deveriam ser indenizados e deixar a área. Só que, por problemas burocráticos, elas ainda não receberam o pagamento. O dinheiro, cerca de R$ 550 mil, está depositado na Justiça Federal de Teresina.
Como essas famílias não receberam a indenização, elas se acham no direito de continuar com suas atividades agrícolas e de criação de animais como se não estivessem dentro de uma área de proteção ambiental. "Elas continuam desmatando e fazendo suas roças", diz França. "Também soltam seu gado, que faz estragos no parque."
CAÇADORES
Apesar das deficiências, de vez em quando, um ou outro caçador é pego em flagrante. Mas pouco resolve. Embora a caça seja proibida em todo o País, não é raro a Justiça mandar soltar os caçadores. Foi o que ocorreu, por exemplo, no início do ano. No dia 13 de janeiro, dois caçadores foram presos em flagrante pelo guardas do parque, com um tatu abatido, uma espingarda caseira calibre 12 e 10 espingardinhas. Levados à delegacia, eles ficaram presos.
Para revolta de Niède, no entanto, menos de um mês depois, em 10 de fevereiro, o juiz Daniel Santos Rocha Sobral mandou soltá-los. Na sentença, ele escreveu que pelas evidências o tatu abatido pelos caçadores, "pessoas humildes, hipossuficientes, sem nenhuma instrução escolar", serviria apenas para a alimentação deles e de suas famílias.
Niède não aceita essa interpretação da lei. "Não é porque sejam pobres que as pessoas vão poder andar armadas, fazer o que quiserem", diz. "Se é para desrespeitar lei, por que então criar parques nacionais? Não seria mais honesto e eficaz transformá-los em território de caça para os pobres trabalhadores rurais?"
Para a presidente da Fumdham, os caçadores da região são na verdade mais do que isso. São predadores. "Já prendemos caçadores com 23 tatus, dos quais 19 eram fêmeas grávidas", conta. "Além disso, eles não caçam para comer, mas para vender. Se fosse para matar a fome não precisariam caçar tantos animais."
DINHEIRO
Além dos caçadores, a administração do parque tem de enfrentar a crônica falta de dinheiro. No passado, a penúria foi tanta que Niède teve de demitir funcionários e chegou a ameaçar deixar o Ibama à frente do parque. Neste ano ainda não recebeu nenhum repasse do governo. O único dinheiro que entrou foi de parcerias com a Petrobrás e a Empresa Brasileira dos Correios e Telégrafos, que dá um total de R$ 120 mil por mês. Niède diz que é necessário, entretanto, pelo menos R$ 300 mil para tocar o parque.
A grande esperança da presidente da Fumdham de resolver os problemas de uma vez por todas é a conclusão das obras do aeroporto internacional de São Raimundo Nonato. Criado no papel em 1996, ele já deveria estar pronto desde 1998. No ano passado, finalmente, o governo federal liberou R$ 5,9 milhões para sua construção.
As obras começaram em abril e deveriam estar concluídas no mesmo mês deste ano, mas isso não vai ocorrer. O novo prazo é outubro. "De acordo com um estudo que encomendei, com o aeroporto pronto poderemos receber até 3 milhões de turistas por ano", diz Niède. "Será o fim de nossos problemas."
Apesar de todos esses problemas e da vontade de desistir de tudo que de vez em quando lhe bate, Niède, aos 71 anos, segue em frente. Às 5 horas ela já está em pé e quase todos os dias percorre o parque, dirigindo uma caminhonete Nissan, com tração nas quatro rodas. Da cabine dupla, ela informa e é informada pelo rádio sobre tudo o que ocorre no parque.
Não é raro ela destruir armadilhas ou enfrentar caçadores. Jura que não tem medo deles. Eles que venham, diz, tirando do bolso um canivete, com uma lâmina de não mais do que 10 centímetros. Tampouco tem medo de levar um tiro. "É melhor morrer com um tiro do que de câncer num hospital."

800 sítios arqueológicos e uma grande riqueza ambiental
Com 130 mil hectares, 214 quilômetros de perímetro e cerca de 800 sítios arqueológicos, o Parque Nacional da Serra da Capivara é, de fato, um museu a céu aberto. Desde 1991, ele é administrada em parceria pelo Ibama e a Fundham, uma organização da sociedade civil de interesse público (Osip) fundada pela arqueóloga Niède Guidon em 1986 para realizar pesquisas na área.
Nascida em Jaú, há 71 anos, Niède mudou-se para a França em 1964, onde fez carreira na Escola de Altos Estudos e Ciências Sociais, em Paris. Em 1991, ela foi cedida pela França ao Brasil, a pedido do governo brasileiro, para administrar o parque. Três anos depois, em 1994, foi assinado um contrato de co-gestão entre o Ibama e a Fundham.
Hoje, a fundação tem cerca de 80 funcionários, entre pessoal administrativo, guardas e guias. Do total de sítios, 123 podem ser visitados por turistas, sempre acompanhados de guias, por trilhas bem conservadas. No interior do parque, há um centro de visitantes, com sanitários, lanchonete e loja de souvenirs.
O centro fica ao lado do Sítio Toca do Boqueirão da Pedra Furada, onde, segundo Niède, foram encontrados os mais antigos vestígios da ocupação humana das Américas. Ela sacudiu a comunidade científica mundial em 1992, ao anunciar ter descoberto no local restos fossilizados de fogueiras feitas pelo homem datados de 48 mil anos. Até hoje, no entanto, grande parte dos arqueólogos não aceita essa datação. Para eles, a presença humana nas Américas é bem mais recente, não passando de cerca de 15 mil anos.
Além da riqueza arqueológica, o Parque da Serra da Capivara tem importância ambiental. Entre a sua fauna, destacam-se as onças, os tatus, os veados, os tamanduás, os morcegos e muitas espécies de aves e anfíbios. Quanto à flora, o parque abriga uma das últimas áreas de caatinga virgem do País. (E.S.)

OESP, 13/03/2005, p. A26
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