Fuligem destroi pinturas rupestres no PI

FSP, Ciencia, p.A6 - 04/12/2004
Moradores e caçadores da região queimam pneus perto de desenhos milenares para escapar da fiscalização
Fuligem destrói pinturas rupestres no PI
Cristina Amorim
Enviada especial a São Raimundo Nonato ( PI )
No meio do sertão nordestino, a caça proibida de animais silvestres tem uma contrapartida inusitada e perigosa para o patrimônio histórico mundial. Dezenas de pinturas rupestres, produzidas por grupos humanos que estão entre os primeiros a ocupar a América do Sul, são destruídas deliberadamente dia após dia sob os olhos de autoridades e comunidade no sudeste do Piauí.
Uma escala de interesses une as duas pontas. Os desenhos, datados de 12.000 anos a 3.500 anos atrás, ficam em paredões de arenito nas cercanias do Parque Nacional Serra da Capivara -tombado pela Unesco em 1991 como patrimônio da humanidade justamente pela riqueza arqueológica.
Animais regionais, como o tatu, são pratos apreciados tradicionalmente entre os moradores da caatinga, servidos ensopados ou como petisco, e se travestiram em iguaria fina para ricos desde que a caça se tornou escassa.
A nova demanda incentiva caçadores e famílias pobres a entrar na mata atrás dos bichos e se instalarem perto de paredes com pinturas. Para driblar a fiscalização, solicitada pela Fundham (Fundação Museu do Homem Americano), co-gestora do parque, eles queimam junto às paredes pneus e quaisquer outros materiais que produzam fuligem suficiente para cobrir os desenhos -de forma irremediável.
Para justificar a estada no terreno, mesmo improvisada, muitos caçadores dizem que estão apenas trabalhando em agricultura de subsistência, cultivando principalmente milho e mandioca. Chegam a provocar pequenas queimadas para plantar, que com freqüência escapam do controle e acabam com a vegetação ao redor. A caatinga, branca na época da seca e verde na época de chuva, adquire tons cinzentos.
"Isso não sai mais, não", diz um técnico do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) do Piauí, que pediu para não ser identificado, mostrando uma grande mancha escura que sobe pela pedra. No alto, ainda é possível identificar algumas figuras humanas pintadas em vermelho. Ele chega a nomear quem são os responsáveis, mas sem o flagrante da caça ilegal, há pouco o que fazer.
Camas
O lugar é chamado de Boqueirão das Camas, por causa dos quartos que caçadores improvisam nas encostas, com colchões escondidos entre a rocha e varas fincadas no chão. Ele está localizado a cerca de dez quilômetros do parque nacional, na divisa dos municípios de São Raimundo Nonato e Tamboril. Apesar da proximidade com o parque, diversos sítios arqueológicos estão desprotegidos. O acesso é difícil e há poucas equipes científicas e de fiscalização para trabalhar dentro e fora da Serra da Capivara.
"Toda essa região abriga uma das maiores concentrações de sítios catalogados com pinturas rupestres do mundo", diz a arqueóloga Niède Guidon, 72, diretora da Fundham e a primeira pesquisadora a estudar os desenhos, na década de 1970.
Os grafismos ajudam a reconstituir a vida dos grupos humanos que moraram no Brasil em tempos ancestrais, cobrindo aspectos da vida cotidiana -como a caça, a morte e o sexo- e cerimonial.
Guidon defende uma das teorias mais controversas sobre a ocupação humana da América e defende a chegada do homem à região há cerca de 50 mil anos -aceita-se hoje que a idade máxima seja 20 mil. A discussão gerou réplicas e tréplicas acaloradas em revistas científicas e um consenso ainda não foi obtido.
Ameaças variadas
De acordo com a arqueóloga, outras pinturas correm risco de desaparecer. Ela cita como exemplo o norte do parque, onde há desenhos catalogados, porém ainda não plenamente estudados. Só os sítios catalogados dentro do parque são 360.
"Essa região tem sítios onde nunca pudemos trabalhar. Para fazer a conservação, a equipe precisa levar produtos químicos, andaimes, escadas, comida, água. Mas não há estrada, só uma picada de 15 km, 16 km", afirma.
Antigos moradores não reconhecem o parque, pois ainda não foram indenizados pelo governo federal, e não permitem que estradas sejam construídas ali.
Além da ação humana, os sítios correm perigo por causas naturais. Erosão e água infiltrada destroem os desenhos se não houver cuidado contínuo. A caça das aves reduziu a quantidade de predadores de insetos -como a maria-pobre, que constrói ninhos de argila misturada com saliva- e de roedores cujas fezes se petrificam no semi-árido sobre as pinturas.

Casal vive como índios pré-históricos
Os pés descalços e empoeirados denunciam o modo de vida de Djanira Amorim Pereira, 55. Ela e seu marido, Francisco, 55, vivem há meses de uma maneira bastante parecida com a dos primeiros moradores do Boqueirão das Camas, no Piauí, há 3.000 anos.
O casal, junto há 37 anos, se abriga do sol e da chuva da caatinga sob paredões rochosos inclinados pela erosão. Ripas arranjam um quarto e palafitas mantêm a comida longe do chão.
Nas paredes, em vez de quadros, havia desenhos milenares deixados pelos antigos condôminos. Agora, estão cobertos por uma camada grossa de fuligem, porém um ou outro risco ainda pode ser visto -com atenção.
Djanira e Francisco são moradores do município de São Raimundo Nonato, mas vivem no sertão para plantar mandioca, feijão e milho para consumo próprio -e caçar de forma ilegal, diz o Ibama. É uma atividade mais lucrativa do que o serviço de vigia noturno que ele mantém em uma clínica na cidade.
A caça de animais, especialmente tatus, é estimulada por um mercado negro local, que vê o bicho como iguaria. Quanto mais raro e ameaçado é o animal, mais alto é o preço pago por ele. Técnicos do Ibama que acompanharam a reportagem dizem que os animais abatidos são guardados em locais afastados, o que dificulta a apreensão e o flagrante.
O casal não admite a caça, tampouco a destruição do sítio arqueológico. No interior da casa improvisada, fumaça sai de uma lata e cobre a parede rochosa. Djanira é rápida em dizer que não havia desenhos naquele ponto, mesmo sem ser questionada da existência da pintura. "A fumaça é para espantar mosquito", afirma.
Apesar das condições precárias, eles não pensam em sair do boqueirão. "Essa terra é nossa, tenho até um papel para provar", diz Francisco, enquanto afia o facão.
Segundo ele, técnicos do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) estiveram na região. O órgão atualmente analisa a possibilidade de assentar famílias no sudeste do Estado. "No começo, achava bom [as visitas]. Mas agora estou me sentindo meio incomodado. Eles não trazem nada para a gente." (CAm)


FSP, 04/12/2004, p. A6
UC:Parque

Unidades de Conservação relacionadas

  • UC Serra da Capivara
  •  

    As notícias publicadas neste site são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.