Sem poder desligar as luzes

JB, Outras Opinioes, p.A13 - 21/11/2003
Sem poder desligar as luzes
Newton Rodrigues
Jornalista
Numa semana em que os aposentados e idosos continuaram a ser espezinhados pelo governo, é bom assinalar a extraordinária entrevista da arqueóloga Niède Guidon, segunda-feira última, no programa Roda Viva. Assustador ouvir uma mulher de 70 anos, que saiu do bem-bom em Paris para se enterrar nos confins do Piauí, em nome da Ciência e de um trabalho social, constatar publicamente que, depois de mais de 30 anos dedicando a vida aos dois itens, sua Fundação Museu do Homem Americano, reconhecida e respeitada internacionalmente, está à beira de fechar, por inoperância e irresponsabilidade do atual governo.
A agraciada com diversos títulos brasileiros e o de Chevalier do governo francês não disse ao público, mas está disposta a devolver simbolicamente a co-gestão do Parque Nacional Serra da Capivara à Unesco, que o tombou como patrimônio cultural da Humanidade, e depositar urnas funerárias na rampa do Palácio do Planalto, entregando à União o que está sob sua responsabilidade, mas que, por estrangulamento financeiro, não tem mais como honrar.
Sequer pode desligar as luzes da Fundação, pois lá dentro abriga múmias milenares , que se desfarão rapidamente, ao contrário das que hoje povoam as hostes governamentais e adjacências.
Há um aeroporto, de construção autorizada pelo presidente da República, que mais uma vez tem seu processo de licitação arrastado e, como ocorreu amiúde no governo FHC, corre o risco de ter a verba devolvida aos cofres públicos. O processo começaria outra vez - sacrificando ainda mais a sofrida população do Sudeste piauiense, incluindo Guaribas, a Miss Fome Zero.
O parque em questão abrange 130 mil hectares, é o único de caatinga e abriga a maior concentração de pinturas rupestres do mundo. Há pinturas com 35 mil anos, a mesma idade das existentes na França, na Austrália e na África.
Com o aeroporto funcionando e o governo pagando o que tem que pagar pelo seu patrimônio cultural, o Piauí sairá da lanterninha econômica e perderá o posto de patinho feio. Investidores italianos e espanhóis já perceberam esse potencial e aguardam o início das obras para investirem pesado na região.
Mas parece que é justamente isso que boa parte dos políticos locais não quer. Mais do que em qualquer outro Estado da federação, a classe política piauiense - com exceções, claro - sofre de coronelite crônica e trabalha para o atraso permanente da população, e o progresso de si mesma.
No começo do ano, foram encontradas centenas de placas solares trancadas em um almoxarifado, em Teresina, que eram destinadas à população carente, para puxar água em poços. Continua havendo desvio contumaz de merenda escolar no interior do Estado. Repetem-se programas que deram em nada como se fossem a mais recente novidade político-administrativa. Grande número de miseráveis sequer foi cadastrado pelo programa contra a fome, que o governo tanto incensa.
Lula foi a Cuba e à África com dezenas de empresários para que ali invistam, mas nunca levou um comerciante que fosse ao Piauí, onde esses empresários ávidos por investirem em locais necessitados seriam muito bem-vindos. E, alegando falta de verbas aqui, perdoou a dívida boliviana com o Brasil.
A pré-história brasileira merece respeito e atenção. Assim como a Dra Niède Guidon e sua equipe. Se forem obrigadas, realmente, a sair de cena, todo o trabalho de preservação da flora e fauna locais irá para o brejo, assim como irão as incalculáveis riquezas arqueológicas; aí mesmo é que a ministra Marina Silva, que ainda não disse, não precisará dizer a que veio.
E o Brasil certamente passará por vexame nacional e internacional sem tamanho.
Para toda a imensidão do Parque Nacional Serra da Capivara, o Ibama local recebe 4 mil reais por mês, o que não dá nem para pagar o combustível , e tem apenas três funcionários efetivos. Enquanto foi possível, era ajudado pela Fundação Museu do Homem Americano que, apesar de ter resistido a oito anos de gestão Weffort, está na UTI com apenas 11 meses de gestão Gilberto Gil. Talvez valha uma canja do ministro.E, sem dúvida alguma, uma atitude do presidente Lula ou dos czares da República.
Newton Rodrigues escreve nesta página às sextas-feiras

JB, 21/11/2003, p. A13
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